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A Lei da Palmada altera o equilíbrio da relação entre pais e filhos. Se pouco ou muito, dependerá da interpretação da lei, mas não deixa de ser um reposicionamento

A discussão sobre a Lei da Palmada é um bom exemplo de como é difícil ouvir o outro no âmbito público. Os defensores da lei sustentam que já é hora de a sociedade brasileira estabelecer uma nova relação com as crianças. Chega de uma educação baseada no castigo físico, que faz vista grossa para inúmeras agressões cotidianas, com a desculpa de que – na teoria – a palmada pode ser educativa. Típica hipocrisia brasileira, que nos causa tantos atrasos...

Os defensores da palmada afirmam que ela em si não é ruim. São os abusos que devem ser proibidos, o que já está previsto na atual legislação brasileira. Não faz falta nenhuma nova lei e há questões mais importantes para o Estado se preocupar. Essa lei é fruto de uma ideologia, que quer diminuir a autonomia dos pais, impondo um único modo de educar.

Cada lado aferra-se à sua posição e se sente ferido pelo "sistema". Os primeiros estão chateados com a mudança de última hora na redação do projeto de lei, de "castigo corporal" para "castigo físico". Os segundos se sentem indignados: o Brasil está a um passo de ferir o direito fundamental de os pais educarem os filhos.

Bem-vindos ao modelo democrático. E aqui não há ironia. Bem-vindos mesmo! Ou queriam um pluralismo "café com leite"? A contemporaneidade implica diversidade e exige maturidade institucional. Não fujamos do debate.

Sugiro aqui três pontos que, a meu ver, devem estar presentes na discussão sobre a Lei da Palmada.

A importância de combater as agressões às crianças. Qual é a melhor forma de evitar a violência e – caso ocorra – de puni-la? Não há uma resposta única. Política não é 2 + 2 = 4 e pode ser útil recorrer à experiência de outros países, não apenas checando se há leis com esse teor, mas também os seus efeitos.

Segundo ponto: a pluralidade de significados da ação humana. Duas palmadas, ainda que tenham intensidades similares, podem ser muito diversas. Duas ações fisicamente semelhantes podem expressar um conteúdo humano distinto. A dor causada é um critério, mas não esgota a análise da conveniência ou não de uma ação. Toda educação implica, nalgum momento, certo sofrimento; e isso não é ideologia, é realismo. Daí não decorre necessariamente que não se deva proibir o castigo corporal, e sim prudência ao tratar de questões não triviais.

E, por último, a relação entre pais e filhos. Esse é um dos aspectos da sociedade em que houve mais mudanças nas últimas décadas. Nos anos 50 do século passado, era impensável, por exemplo, os pais pedirem a opinião dos filhos na escolha do colégio. Hoje, é o oposto; a decisão é sempre dialogada. Naturalmente, há pessoas que não se sentem confortáveis com o rumo dessas alterações e tentam revertê-lo; já outras são exatamente as que promoveram, batalharam por elas, e desejam – pelo contrário – o seu aprofundamento.

A meu ver, aqui está o ponto mais importante no debate sobre a Lei da Palmada, pois afeta a todas as famílias. Não apenas as violentas, que serão punidas; não apenas as que continuarão (privadamente) dando palmadas. Afeta a todas, também as mais liberais. A Lei da Palmada altera o equilíbrio da relação entre pais e filhos. Se pouco ou muito dependerá da interpretação da lei, mas não deixa de ser um reposicionamento.

Penso que a bandeira da supressão do castigo físico é legítima e tem um profundo sentido, de acordo com a sensibilidade contemporânea: buscar uma relação mais harmônica entre pais e filhos. Mas, se for conduzida com radicalismo, pode ter um efeito contrário: colocar os filhos contra os pais, tendo o Estado como árbitro, mesmo em situações normais, dentro das idiossincrasias de cada família.

Do mesmo modo que a palmada, a própria lei tem – ou pode ter – uma pluralidade de significados. Encontrar aquele mais adequado à nossa sociedade é tarefa de todos, em conjunto. Às vezes, numa democracia, é preciso gritar; noutras muitas, o que faz falta é escutar o outro. Com diálogo, independentemente do resultado – que ainda será votado pelo Senado –, sairemos ganhando. Todos. Bem-vindos à democracia.

Nicolau da Rocha Cavalcanti, advogado, é presidente do Centro de Extensão Universitária (CEU - São Paulo). E-mail:nicolau.cavalcanti@gmail.com.

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