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O setor de energia elétrica foi surpreendido pela divergência entre a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e algumas comercializadoras no que se refere à contabilização da matriz de venda de energia incentivada, em caso que promete discussão polêmica e duradoura. A entidade questiona a conduta das empresas, as quais supostamente obtiveram incremento de energia incentivada sem a respectiva identificação de origem em geradores de fonte incentivada, em desacordo com a legislação vigente. Se mantido o entendimento da CCEE, o próximo passo será o ressarcimento às distribuidoras de energia de pelo menos R$ 100 milhões já contabilizados, sem prejuízo de multas e demais penas que podem vir a ser aplicadas aos agentes.

Se de um lado as comercializadoras negam qualquer irregularidade nas suas atividades, questionando o fato de a CCEE apontar a ilegalidade apenas depois de meses de operação, do outro a CCEE afirma estar agindo “em prol da evolução do mercado, sempre orientada pelos pilares da isonomia, transparência e confiabilidade”.

Importante lembrar que as “fontes incentivadas” de energia foram criadas pelo governo para fomentar o investimento em geração através de projetos de fontes eólica, de biomassa, de biogás de aterro sanitário, solar e de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), sendo que o “incentivo” inerente a tais fontes é o desconto na tarifa do “fio” (Tusd) paga pelos consumidores livres que adquirem essa energia. Foi criada pelo governo, inclusive, uma categoria especial de consumidores livres (entre 0,5 e 3 MW), que só podem migrar para o ambiente livre através da aquisição de energia incentivada.

Não se pode comercializar uma energia que não existe

Na prática, os geradores se apropriam desse benefício vendendo a energia incentivada por preços mais altos, uma vez que os consumidores terão o desconto na tarifa do fio, que varia de 50% a 100%, dependendo da fonte de geração. A fonte mais rara, agraciada com o desconto de 100%, é a energia produzida através da queima de biogás e PCHs em operação anteriormente a 2002. Trata-se de uma energia muito restrita, cuja capacidade total de geração no país é de aproximadamente 300 MW (cerca de 0,25% da matriz energética brasileira). O desconto no fio usufruído pelos consumidores que adquirem essa fonte é pago pelos demais consumidores, uma vez que as concessionárias de distribuição não podem sofrer tal perda de receita. Em outras palavras, se o volume de energia incentivada crescesse exponencialmente, seria provocado um significativo aumento das tarifas de fio para todos os demais consumidores do país, livres ou cativos. Como no mundo real não é possível obter biogás em larga escala, essa restrição física cria uma proteção natural contra o encarecimento tarifário acima mencionado.

O momento atual do país, em que vivenciamos uma discussão ética do ambiente político, pode ser extremamente oportuno para uma ampla reflexão sobre as práticas no mercado livre de energia, e até sobre os critérios que as empresas deverão adotar ao selecionar um parceiro comercial. O mercado livre de energia é um mercado físico, onde toda a energia comercializada é efetivamente gerada por usinas e será, na outra ponta, efetivamente consumida por consumidores livres (indústrias, shoppings, entre outros).

Não se pode comercializar uma energia que não existe, uma energia que não foi efetivamente gerada por uma usina da respectiva fonte de desconto. Isso desvirtuaria todo o equilíbrio do mercado, criando distorções e perdas para alguns agentes (e ganhos indevidos para outros). As regras de mercado são complexas (o setor elétrico é complexo), e às vezes surgem falhas (ou brechas) operacionais. O que deve prevalecer, acima de tudo, é a ética empresarial por parte das comercializadoras de energia, que devem agir de forma a preservar a transparência e a segurança dos agentes envolvidos, principalmente a segurança dos consumidores.

Casos como esses reafirmam a importância de que players do mercado livre de energia sejam éticos e colaborem com os órgãos reguladores, utilizando as melhores práticas para o aprimoramento das regras do setor, tomando-se sempre por premissa os conceitos e princípios basilares da governança corporativa, instituto que permite a criação de mecanismos eficientes, tanto de incentivos quanto de monitoramento, a fim de assegurar que o comportamento dos executivos das empresas esteja sempre alinhado não só com o interesse dos sócios ou acionistas, mas principalmente com as normas que regem as atividades da companhia.

Pierre Moreau, professor e doutor pela PUC/SP, é membro do Conselho do Insper/Direito.
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