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O presidente da República, Jair Bolsonaro, ao lado do ex-ministro da Justiça e ex-juiz federal Sergio Moro
O presidente da República, Jair Bolsonaro, ao lado do ex-ministro da Justiça e ex-juiz federal Sergio Moro| Foto: Gazeta do Povo/Arquivo

A controvérsia que mobiliza o país mereceria uma análise técnico‑pericial criteriosa tanto das mensagens contidas no celular de Sergio Moro quanto das gravações audiovisuais da reunião ministerial citada pelo ex-ministro da Justiça em seu recente depoimento à Polícia Federal. Afinal, a eventual comprovação dos crimes atribuídos ao presidente da República impacta diretamente nos rumos da nação.

Ocorre que o trabalho pericial até aqui desempenhado não corresponde ao protagonismo esperado na elucidação das graves imputações de ambos os lados, na medida em que há flagrante atropelo da lei. De saída, nunca existiu o necessário controle da cadeia de custódia da prova, assim definida pela Lei 13.964/2019 (“pacote anticrime”) como “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte” (artigo 158-A). Lamentável. Preservar a integridade do objeto de prova é fundamental para garantir a idoneidade da perícia.

Aliás, tanto o celular quanto o equipamento que contiver a gravação audiovisual relativa à reunião ministerial havida em 22 de abril exigem os mesmos cuidados na coleta, preservação da integridade dos dados, extração de informações patentes e recuperação de dados eventualmente “apagados”, por intermédio de ferramentas distintas para cada qual dos exames.

Há informação de que o arquivo audiovisual foi fornecido por meio de um pen-drive. Grave equívoco. O correto, necessário e imprescindível é que esse arquivo seja obtido mediante extração forense, com geração de código hash, diretamente do sistema utilizado na sua criação, fornecendo-se cópia do auto de coleta, no qual deve ser consignado o respectivo código gerado (hash). Isso dificultaria, inclusive, que ocorresse edição do arquivo, pois, se ocorreu, e se foi bem feita, será muito difícil constatar.

No caso do celular, mesmo arquivos eventualmente apagados podem ser recuperados, uma vez que meros fragmentos de arquivos podem ser reconstruídos ou “esculpidos” (carving files). Vale destacar ainda que, tecnicamente, recuperar arquivo apagado é muito mais fácil que comprovar que um arquivo fora editado, pois há ferramentas muito eficazes para encobrir edições e modificações de certos atributos de arquivos.

Nesse contexto, marcante contradição no comportamento do ex‑ministro merece destaque. Em sua oitiva, Moro disponibilizou o aparelho celular tão somente “para extração das mensagens trocadas via WhatsApp com Bolsonaro e Carla Zambelli”. E por que não as demais mensagens? Será mesmo que a controvérsia se resume a poucos diálogos? Ora, desde quando o investigado decide aquilo que é do interesse da investigação? Na verdade, nunca decidiu. Bem por isso, quando chamado a se manifestar sobre a conveniência de entrega parcial, pelo Executivo, dos vídeos da reunião, Moro pontuou que escolher trechos “que são ou não importantes para investigação é tarefa que não pode ficar a cargo exclusivo do investigado”, porquanto isso não garantiria a integridade do elemento de prova fornecido. Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço...

A cereja do bolo no tocante à inconsistência pericial reside no fato de que o pacote anticrime, de iniciativa do então ministro da Justiça Sergio Moro, sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, disciplinou rigorosamente a questão relativa à cadeia de custódia da prova, preconizando tudo aquilo que é obrigatório e não está sendo feito, ironicamente, no caso concreto.

Todavia, existe solução direta para sanar a vulnerabilidade pericial; basta se observar a determinação do STF. Isso porque o decano e relator do inquérito em andamento, ministro Celso de Mello, ao requisitar as gravações, consignou expressamente que “as autoridades destinatárias de tais ofícios deverão preservar a integridade do conteúdo de referida gravação ambiental (com sinais de áudio e vídeo), em ordem a impedir que os elementos nela contidos possam ser alterados, modificados ou, até mesmo, suprimidos, eis que mencionada gravação constitui material probatório destinado a instruir, a pedido do senhor procurador-geral da República, procedimento de natureza criminal”. Como se vê, há tempo para uma perícia com alto grau de confiabilidade e serventia à investigação.

Para tanto, urgente nova diligência pericial que tenha por objeto o equipamento utilizado na gravação da reunião ministerial, dele se fazendo a respectiva extração forense do arquivo desejado. Só dessa forma estará assegurada de forma indelével a integralidade (todo o arquivo) e a integridade (na forma original) do arquivo, de maneira não só a garantir que não seja editado anteriormente ao exame, como também impedindo o mascaramento de eventuais edições. Tudo em prol da necessária e cabal apuração dos fatos.

André Damiani é criminalista especializado em Direito Penal Econômico. Diego Henrique é advogado especialista em Compliance. Raphael Martello, sócio-fundador do Dynamics Perícias, é perito criminal aposentado, professor de Criminalística da Academia de Polícia Civil de São Paulo e especialista em Compliance e Governança Corporativa.

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