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A rainha do Reino Unido, Elizabeth II, durante leitura do discurso de abertura do Parlamento britânico, em 14 de outubro de 2019.
A rainha do Reino Unido, Elizabeth II, durante leitura do discurso de abertura do Parlamento britânico, em 14 de outubro de 2019.| Foto: Tolga Akmen/POOL/AFP

O discurso da rainha Elizabeth II na tradicional sessão de abertura do Parlamento inglês, no último dia 14, relembrou aos britânicos e ao mundo um anacronismo na democracia parlamentarista britânica: o faz de conta. Quem escreve o discurso de Sua Majestade é o primeiro-ministro. Com o peso da imagem simbólica da monarca de 93 anos, Boris Johnson, atual premiê, colocou na voz de Elizabeth II as pretensões de seu governo sobre o Brexit, a polêmica e complexa saída do Reino Unido da União Europeia.

O “parece ser” é um instrumento que sociedades e governos, mesmo democráticos, ainda entendem como útil e estratégico no convencimento das pessoas de todos os cantos do globo. Aristóteles expôs com ênfase que a grande fragilidade da democracia é que ela facilmente se degenera em demagogia, proporcionando o governo do demagogo. Governos igualmente se valem da tradição, muitas vezes supervalorizada, como se estático fosse o mundo. E em nome da tradição, velhas práticas são reiteradas, em sucinta manipulação do imaginário em verdadeira forma de conquista.

O próprio Brexit, advindo do referendum em 2016, foi um experimento que se valeu de elementos históricos e gloriosos dos britânicos para “retomar o controle do país”, que estaria nas mãos da Europa. Na forma como foi realizado, assemelha-se a um “faz de conta” que reacendeu o imaginário de um tempo onde o sol nunca se punha no império britânico.

Para o Reino Unido, a entrada tardia na Comunidade Europeia em 1973, quando já não era mais um império e sua economia estava cambaleante, foi uma derrota

O economista espanhol Josep M. Colomer, autor do clássico Ciencia de la Política, escreveu recentemente que, para os europeus continentais, a União Europeia foi o triunfo da paz, da democracia e das oportunidades econômicas. Já para o Reino Unido, a entrada tardia na Comunidade Europeia em 1973, quando já não era mais um império e sua economia estava cambaleante, foi uma derrota: um destino a que se havia resistido. Foi uma necessidade à qual a antiga grande potência teria de aderir, mas nunca um compromisso firme ou triunfante com a construção da Europa.

Evidentemente, o Reino Unido realizou contribuições importantes para a União Europeia com sua força militar, sua presença no Conselho de Segurança da ONU e no G7, seu enfoque liberal na economia e a presença da língua inglesa como um idioma universal.

Por outro lado, à medida que a União Europeia se reforçava, os sucessivos governos britânicos se esquivavam e resistiam a uma maior integração. Quiseram reduzir sua contribuição financeira para o orçamento do bloco, ficaram excluídos do Acordo de Schengen para a livre circulação nas fronteiras dos países da UE, não adotaram o euro como moeda, e não aceitaram a prevalência do Tribunal Europeu de Justiça sobre a legislação nacional sobre determinados direitos fundamentais. A cada tentativa de avanço de maior integração, o Reino Unido impunha suas concessões sob ameaça de um veto a outros temas e, sentindo que poderia ter muito a perder, a UE acabava cedendo.

Mas a permanente tensão entre o Reino Unido e a UE aumentou com a recessão econômica iniciada em 2008. Com ela, veio a onda de trabalhadores imigrantes da Europa Oriental, cuja liberdade de movimento havia sido recentemente implantada. Surgiram, então, várias formas de nacionalismo inglês que fizeram ecoar velhas reminiscências de tempos imperiais.

Em 2010, o então primeiro-ministro, David Cameron, deixou claro nas negociações com Bruxelas que o Reino Unido permaneceria fora da zona do euro e não estava comprometido com uma maior união econômica e monetária, e nem mesmo com o avanço da integração política do bloco. A única concessão foi uma modesta liberdade de movimento da imigração dos europeus do leste sob diversas condicionantes. Curiosamente, Cameron dava sinais de que o Reino Unido pretendia permanecer na UE. E, pressionado por forças políticas locais, realizou o referendum de 2016 certo de que o voto pela permanência no bloco venceria. Foi um blefe.

Desde então, com a vitória apertada pró-saída da UE, o Reino Unido mergulhou na mais grave crise política e constitucional desde a Segunda Guerra. Sem uma Constituição escrita, vê seu modelo democrático, antes esplendoroso, ineficiente para alcançar uma solução para os problemas efervescentes de um mundo inexoravelmente globalizado, onde certas tradições políticas e governamentais tornaram-se obsoletas.

O referendum, instrumento da democracia direta, foi utilizado de maneira irresponsável para tratar de questão altamente complexa num “faz de conta democrático”, se valendo de informações superficiais, apaixonadas e imaginárias patrocinadas pela nostalgia do Império.

Jean Pierre Santiago é advogado e cientista político.

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