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Recentemente divulgado no site da Prefeitura Municipal de Curitiba, o casamento coletivo que se realizará em dezembro na Arena da Baixada deverá ser o maior já realizado na cidade, com previsão de participação de aproximadamente 1,5 mil casais. Trata-se de parceria realizada entre a prefeitura de Curitiba, o sistema Fecomércio, os cartórios de registro civil, o Atlético Paranaense e o Poder Judiciário do estado, destacando-se os trabalhos realizados pela desembargadora Joeci Machado Camargo, verdadeira defensora da aproximação entre o Judiciário e a sociedade por meio do Projeto Justiça nos Bairros.

O tema que levantou polêmica diz respeito à possibilidade de participação de casais em união homoafetiva no evento, com o objetivo de regularizar civil e religiosamente a situação familiar, por meio da celebração do casamento frente a suposta afronta ao texto constitucional previsto no artigo 226, parágrafo 3º, o qual dispõe que, para efeito da proteção do estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. A equivocada crítica levantada seria a de que a referida celebração estaria promovendo uma "apologia ao casamento gay" por parte do Executivo municipal, de tal modo que o casamento civil seria uma exclusividade de casais heterossexuais.

No tocante à aparente vedação constitucional, é de se destacar o importante papel do Supremo Tribunal Federal (STF) como intérprete máximo da Constituição, atuando como defensor dos interesses tanto das maiorias quanto das minorias, sendo que, em uma real democracia, o Poder Judiciário possui a missão de proteger e aplicar os princípios e valores constitucionais existentes explícita e implicitamente na legislação, dentro de um processo de hermenêutica constitucional, o que muitas vezes significa decidir em sentido contrário aos posicionamentos majoritários emanados pelo Poder Legislativo.

Uma vez que os dispositivos da norma constitucional não podem ser analisados isoladamente, com a finalidade de interpretar o texto do mencionado artigo 226 com os demais preceitos e dispositivos da própria Constituição, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277-DF e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamento nº 132-RJ, o STF assentou o entendimento pela proibição de discriminação das pessoas em razão do sexo, seja no plano da dicotomia homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual de cada qual deles.

Segundo o Supremo Tribunal Federal, o sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualdade jurídica ante a proibição ao preconceito, à luz do artigo 3º da Constituição Federal. O reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana prevê o direito à autoestima nos mais elevados pontos da consciência do indivíduo, como direito à busca da própria felicidade.

Para o STF, o tratamento constitucional da instituição da família não empresta ao substantivo nenhum significado ortodoxo de modo a constituir interpretação reducionista, sendo que a Constituição de 1988 ao se utilizar da expressão "família", não limita sua formação a casais heteroafetivos, nem à formalidade cartorária, com vistas à celebração civil. A família, como instituição privada, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica, caminhando na direção do pluralismo como categoria sociopoliticocultural.

Considerando que nas referidas decisões o STF reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas homoafetivas e, tendo em vista que tais decisões possuem eficácia vinculante a toda a administração pública, seguindo esta linha interpretativa, o Superior Tribunal de Justiça, em seu papel de uniformizar o direito infraconstitucional, decidiu, no Recurso Especial nº 1.183.378/RS, por excluir do Código Civil todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família.

Assim, ante ao poliformismo familiar, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como única via para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

Entretanto, ao lado do reconhecimento da impossibilidade de distinção de tratamento civil entre casais hetero e homoafetivos que vivam em união estável, se encontra a liberdade das instituições religiosas em estabelecer vedações à celebração ao casamento no âmbito religioso, dentro dos princípios norteadores de sua fé e atividade institucional. Não se está a negar os efeitos civis do casamento de pessoas que convivam em união homoafetiva, mas sim, elucidar a possibilidade de determinadas instituições religiosas a se negarem à celebração do casamento religioso com base nas normas e princípios que regem seus estatutos e diretrizes doutrinárias.

Da mesma forma que não se pode negar o direito de determinada instituição religiosa a celebrar o casamento religioso de pessoas que convivam em união homoafetivas, quando estes se encontram amparados por suas práticas doutrinárias, não se pode obrigar outras instituições a celebrar o referido casamento. Uma vez que o Estado não pode deixar de reconhecer as uniões homoafetivas com vistas à defesa dos princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, o próprio Estado não pode obrigar as entidades religiosas a celebrar no âmbito de suas instituições o casamento de pessoas que vivam em tal situação, caso esta seja contrária aos seus dogmas e princípios de fé.

O que se busca em um Brasil formado por um povo plural e multicultural é a concomitante defesa dos interesses sociais, pautados tanto no direito em reconhecer civilmente o casamento de pessoas que convivam em união homoafetiva, quanto na liberdade das entidades religiosas em celebrar ou não tais casamentos, dentro do âmbito de suas instituições, sob pena de violação do artigo 5º da Constituição, o qual prevê, dentre os direitos e garantias fundamentais, a liberdade de consciência e de crença.

Evaldo Pedroso de Paula e Silva é vice-presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/PR.

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