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“Por que você está querendo editar Chesterton?” A pergunta veio à queima-roupa, sem aviso prévio, como se eu fora o Rio de Janeiro e meu amigo, o fuzil de um traficante. Era talvez de se esperar que, tradutor de Gilbert Keith Chesterton e leitor compulsivo do jornalista inglês desde os 20 anos, tivesse na ponta da língua a resposta que faria meu amigo correr para comprar um livro do até ali ilustre desconhecido e lê-lo de cabo a rabo, e todos seriam felizes para sempre.

Mas, é claro, não foi o que aconteceu. Não sabia por onde começar, hesitante sobre qual das inumeráveis facetas do escritor seria a mais sintética, qual de suas qualidades a mais luminosa, qual de seus gêneros literários o mais literário. E o tempo passou, rolou e foi-se embora; a Terra girou até cansar ao redor do Sol e o meu amigo envelheceu e morreu ali mesmo, com a sua caveira a esperar, felizmente sentada, por uma resposta satisfatória à pergunta que em vida fizera. Ao fim e ao cabo, também eu morri, e se talhou no mármore de minha lápide, para o pasmo eterno dos séculos, a explicação para minha paralisia diante daquela questão: “G. K. Chesterton é indescritível”.

Jorge Luis Borges era seu fã, e Fitzgerald queria escrever como ele

Em seu Ortodoxia, Chesterton, a falar sobre a veracidade do cristianismo, faz notar o paradoxo de que é tanto mais difícil provar-se algo quanto mais provas há em seu favor. Que houvesse incontáveis fatos a corroborar a existência da religião cristã, infindas convergências insuspeitas ao seu redor e uma profusão inesgotável de ligações lógicas e analógicas que dela decorrem antes dificultava do que facilitava o trabalho do apologista que, incapaz de apreender-lhe a essência e adquirir uma visão do todo, ficava a patinar eternamente em qualidades e conexões luminosas, porém periféricas. E, então, arremata, com a imagem que nunca mais me saiu da cabeça: “Assim, pois, se, de supetão, se perguntasse a um homem de inteligência comum: ‘Por que você prefere a civilização à selvageria?’, ele percorreria o olhar, desesperado, de um objeto para o outro, e não seria capaz de dizer mais do que, ‘Bem, tem esta estante de livros aqui... e pianos... e a polícia’. A melhor prova a favor da civilização consiste em se provar que reunir provas a seu favor é um exercício complexo. A civilização fez tantas coisas. Mas a multiplicidade mesma das provas, que deveria tornar a resposta irrefutável, torna-a impossível”.

Pois bem: Chesterton é como a civilização. O rotundo jornalista fez tantas coisas, e escreveu tantas, mas tantas outras coisas mais (a editora Ignatius Press, que lhe está a compilar as obras completas, lançou até agora 37 volumes, com uma média de 500 páginas cada, and counting), que não consegui fazer mais do que percorrer os olhos da inteligência pelas informações que tinha na cabeça e balbuciar: “olha, tem O Homem Eterno... e aquela frase lá sobre o amor-livre... e o Hitchcock era seu fã...”.

Por onde começar a provar que vale a pena ler Chesterton? Ao falar sobre a taradice moderna (de 100 anos atrás) de quem ficava a esbravejar terrivelmente contra a monogamia, diz o inglês que se queixar de poder fazer sexo apenas com uma mulher seria como reclamar de poder entrar no Paraíso apenas por uma porta. Há inúmeras, incontáveis portas para Chesterton. De todos os formatos e tamanhos possíveis e imagináveis, bem casam, no plano simbólico, com os seus 140 quilos e mais de 2 metros de altura do plano físico.

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Há, por exemplo, a porta da carteirada: você tem de ler Chesterton porque Jorge Luis Borges era seu fã, e Fitzgerald queria escrever como ele. Pronto. É isso e, como diria o presidenciável Bolsonaro, com toda a sua belicosidade, “cabô”! Há a porta luminosa do bom senso: não há, talvez, no sombrio século 20, autor que tenha tido mais bom senso puro e simples do que Chesterton. Com certeza não há autor que melhor o tenha usado contra as brincadeirinhas intelectuais e filosóficas tão em voga na época (e ainda mais hoje). Temos a porta da literatura, também: O Homem que foi Quinta-Feira, thriller kafkiano; O Napoleão de Notting Hill, distopia simbólica sui generis; e a saga do detetive padre Brown, na minha opinião mil vezes melhor escrita que a saga de Sherlock Holmes, são clássicos já estabelecidos numa Inglaterra em que clássicos são Dickens e Oscar Wilde, e o adjetivo não é usado assim levianamente. Há a porta da polêmica; e a porta da retórica filosófica; e a porta da poesia (C.S.Lewis sabia de cor parágrafos inteiros de seu A Balada do Cavalo Branco). Existe a porta da apologética, da defesa da fé, já algo surrada de tantos por ela entrarem. E quanto à porta dos insights literários críticos? A porta dos ensaios de jornal? Das biografias? Do humor?

Como provar a alguém que vale a pena ler Chesterton? Que vale a pena editá-lo, sobretudo num país que carece de tantos clássicos? Para começo de conversa, o próprio Gilbert Keith, conquanto polemista nato e incansável (polemizava até com as paredes), não era lá muito fã de quem ficava a pedir provas cabais, irrefutáveis e “científicas” para Deus e o mundo. Para meio de conversa, precisaríamos de um calhamaço formidável, além de um gênio tão colossal quanto ele foi. Não temos, evidentemente, nem este nem aquele.

Assim, pois, se você nunca viu (ou leu) Chesterton mais gordo, faça um favor a si mesmo: não fique a ler só apresentações e introduções. Não leia só o que eu ou qualquer outro tem a dizer sobre Gilbert Keith: leia o que Gilbert Keith tem a dizer sobre tudo o mais. Elenquei algumas das portas, mas deixei de fora da lista a mais importante de todas: a porta da alegria. É que, se não feliz para sempre, você haverá de ser, com toda certeza, ao menos muito mais feliz do que foi até agora.

Raul Martins é tradutor e editor da Sociedade Chesterton Brasil.
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