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O presidente Jair Bolsonaro é alvo de dezenas de pedidos de impeachment, mas nenhum sequer foi aceito
O presidente Jair Bolsonaro é alvo de dezenas de pedidos de impeachment, mas nenhum sequer foi aceito| Foto: Alan Santos/PR

Em uma democracia madura e saudável, o impeachmentdeve ser a exceção. É didático que, enquanto sociedade, enfrentemos as consequências de nossas escolhas eleitorais, para o bem e para o mal. Assim, o impeachment não deve figurar como uma ferramenta para que a classe política perdedora reverta eleições legítimas que lhe sejam desfavoráveis, ou mesmo como mecanismo de recall para os maus gestores.

O impedimento não deve ser mecanismo de vingança, de desaprovação moral, de manifestação de eleitores arrependidos, mas sim consequência sofrida por ato ilícito, descrito na Constituição Federal e na Lei 1.079/1950. Em seu processamento não cabem avaliações morais sobre o governante ou seu desempenho. Seu uso desenfreado é deletério à democracia e sua banalização deve ser combatida.

Não devemos, no entanto, na contramão da banalização do impeachment, acabar por banalizar os crimes de responsabilidade: presentes os fundamentos jurídicos gritantes para seu impulso, torna-se imperativo seu recebimento.

Para que consigamos nos colocar no desejável espaço de tecnicidade, é importante que nos perguntemos de forma honesta: estivesse no lugar desta liderança alguém que movimenta nossas paixões em sentido contrário, os fundamentos postos seguiriam sólidos?

A resposta não comporta muitas variáveis. É preciso admitir que Jair Messias Bolsonaro deve sofrer o processo de impeachment e ser afastado do cargo.

Dentre os argumentos utilizados nos mais de 60 processos de impeachment, estão os crimes de responsabilidade perfectibilizados nas comemorações ao golpe de 1964 e exaltações a seus torturadores, na ameaça à liberdade de expressão e de imprensa, no uso das estruturas administrativas para interesses privados – com especial destaque para a mobilização da Polícia Federal em prol de seus filhos, investigados por graves delitos – e nos inúmeros ataques à saúde pública.

A questão da saúde é das mais latentes e objetivas: o presidente nitidamente sabota a realização de uma ação sistemática e segura de combate ao novo coronavírus, tornando impossível a atuação assertiva do Ministério da Saúde. Objetivamente, o presidente cometeu diversos crimes de responsabilidade na “gestão” da crise gerada pela Covid-19.

Ao fazer escárnio com a população enlutada, Bolsonaro procede de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo (artigo 9.º, 7 da Lei 1.079/50). Ao inserir as medidas básicas de combate à pandemia no campo de disputas políticas, encorajando aglomerações, desaconselhando o uso de máscara e propagando a utilização de medicamentos sem indicação médica, contrariando inclusive as orientações da Anvisa sobre a eficiência das vacinas, Bolsonaro objetivamente violou o direito à saúde, ofendendo a probidade na administração (artigo 4.º, IV da Lei 1.079/50).

Ambos os crimes de responsabilidade descritos deveriam ser suficientes para a abertura do processo de impeachment. As ações criminosas do presidente, no entanto, não estão apenas em sua retórica.

As inúmeras idas e vindas na aquisição de materiais de proteção, vacinas e insumos representam atentado contra a população brasileira. Em ataque sistemático à saúde do povo brasileiro. Em maio de 2020, o Brasil se recusou a fazer parte da Covax, coalizão de 165 países que poderia gerar até 200 milhões de doses para o Brasil, situação que se repetiu em outras oportunidades, todas documentadas. Enquanto isso, investigações jornalísticas denunciam mais de 6 milhões de testes para diagnóstico de Covid-19 vencendo sem uso; além de quase R$ 90 milhões gastos com medicações cujo uso foi desaconselhado pela OMS, pelo Conselho Federal de Medicina e pela própria Anvisa.

Os atentados foram coroados com a inadmissível situação de Manaus, comunicada à Presidência com mais de um mês de antecedência, conforme admitiu a Advocacia-Geral da União. O governo deliberadamente sacrificou dezenas de pessoas.

É dolorosamente evidente que o presidente atenta contra a saúde pública sem qualquer pudor, incidindo em crimes de responsabilidade. É certo que o impeachment gera instabilidade e traumas institucionais, e que nossa jovem democracia já enfrentou mais impedimentos do que seria desejável. A ausência do impeachment, no entanto, é muito mais custosa: enquanto Rodrigo Maia toma fôlego, brasileiros morrem sufocados pelas atitudes criminosas do presidente e pela covardia política do parlamento.

Juliana Bertholdi é professora de Direito Eleitoral e Processo Penal, advogada especialista em crimes eleitorais e da administração pública e mestranda em Direitos Humanos, Justiça e Democracia.

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