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O maldito Minha luta, de Hitler, caiu em domínio público em janeiro de 2016. A edição alemã, já lançada, é um primor: austera visualmente – sem a mínima chance de que se reconheça ali qualquer propaganda – e crítica e detalhadamente comentada, dissecada. Deve, ou deveria, ser o modelo editorial para qualquer empreitada do gênero. No Brasil, até o momento, sabe-se de duas editoras que colocarão o livro no mercado. A Record não o fará. Mas eu – e falo por mim, não pela editora – não marginalizo quem o publique.

A questão é um poderoso ensejo para se discutir a função do editor no mundo em que vivemos, e ainda um gancho para se observar e estudar a cova em que vai enterrado, como indigente, o debate público brasileiro.

Não se trata de difundir ou não um livro; seu texto sempre esteve disponível e é facilmente encontrado na rede. O editor também é um educador

Não se trata de difundir ou não um livro; seu texto sempre esteve disponível e é facilmente encontrado na rede. Mas o editor é um mediador, um intermediário por excelência, e, diante de um cenário como este, em que o acesso fácil ao livro é um dado inescapável da realidade, uma de suas funções é a de qualificar essa difusão, dar-lhe dimensão histórica, massa crítica, o peso cultural do tempo. Acredito nisso. E é o que fez a exemplar edição alemã.

Se o livro existe e se está ao alcance de todos sem qualquer filtro, é, sim, papel do editor entrar em campo, antecipar-se e trabalhar com responsabilidade para que a leitura do texto maldito – já que inevitável – venha acompanhada de todos os cuidados e contextualizações. É preciso debatê-lo, confrontá-lo, desmontá-lo; não escondê-lo nem mitificá-lo – o que sempre tenderá ao efeito contrário. Ações como a do Ministério Público do Rio de Janeiro, que pediu e conseguiu a suspensão da comercialização de Minha luta, tampouco contribuem com alguma luz para a discussão. Ao contrário. Obscuro, o exercício do autoritarismo nunca foi eficiente em convencer. Nada se aprende por meio da interdição. E o que se tem aí é apenas mais uma cristalina demonstração daquilo em que se converteu o saudoso debate público brasileiro: uma disputa por calar o contraditório, por enterrar o dissenso.

Cabe ao editor, do ponto de vista prático, preparar uma edição crítica, comentada, anotada, com a colaboração de historiadores, filósofos e cientistas políticos, que ofereça ao leitor também (e fundamentalmente) a história de como aquelas ideias terríveis foram aplicadas, inclusive para que tal barbárie jamais se repita. É preciso destrinçar criticamente, em detalhes, esse conteúdo, se ele fatalmente chega e chegará aos jovens – e isso é papel do editor.

Só isso, contudo, não basta. Não será suficiente um miolo seriamente dissecado, pormenorizado, se a comunicação visual do livro – capa etc. – flertar com a propaganda. Rosto de Hitler na capa, suásticas para cima e para baixo, um tratamento épico, monumental, ao relançamento de Minha luta? Não. Nada disso me parece aceitável. É preciso ser austero.

O editor também é um educador. Se há convicção no trabalho, na linha editorial, no que foi planejado e no que se pretende, na intenção, na vocação pública do que se edita, há também força para resistir e – não digo convencer – ser respeitado.

Há, por fim, a questão das livrarias. Não me sinto à vontade para discutir suas escolhas, se não aceitarão vender o livro; mas, seja por que motivo for, certamente não se trata de censura. São empresas privadas e suas decisões precisam ser compreendidas e respeitadas sob o mesmo entendimento – o da liberdade – que permite que qualquer editora publique Minha luta.

Que cada um faça suas escolhas – e que arque com as consequências num ambiente de livre iniciativa.

Carlos Andreazza é editor-executivo da Editora Record.
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