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Curitiba, no início da década de 1990, cultivou o sonho de tornar-se modelo de respeito ao meio ambiente. A “capital ecológica” orgulhava-se da grande quantidade de área verde por habitante, da coleta seletiva de lixo, do inovador sistema público de transporte, entre muitas outras coisas. Governo e sociedade pareciam caminhar juntos, cada qual incentivando o outro a ir mais longe. O compromisso com a preservação da natureza por algum tempo foi o aspecto central da identidade curitibana. A cidade parecia, de fato, ter encontrado sua vocação: crescer sem abrir mão da qualidade de vida; dar oportunidades para uma classe média robusta e crescente sem sacrificar o ar puro, as áreas verdes e as fontes de água. Não se cogitava, aqui, medir o desenvolvimento pelo número de arranha-céus, helicópteros ou shopping centers. Pelo contrário, vislumbrava-se a possibilidade de uma cidade grande e moderna e ao mesmo tempo pacífica, bonita, acolhedora e democrática, inclusive no plano econômico: o refrigerante local era preferido à Coca-Cola; a Confeitaria das Famílias ao McDonald’s; em nenhum bairro seria bem recebida uma ponte estaiada.

Curitiba, no entanto, mudou. A cidade envelheceu, deixando o idealismo um pouco de lado. Arranha-céus começam a se repetir de forma monótona. O pequeno comércio vai sendo engolido por supermercados, shopping centers e franquias. Curitiba, dessa forma, vai perdendo peculiaridade. Outrora altiva e destemida, a cidade parece querer nivelar-se à média, tomando como base, inexplicavelmente, o modelo paulistano. Ainda assim, não é fácil esmagar uma grande ideia. Continuamos olhando com alguma admiração ou curiosidade o caminhão do “lixo que não é lixo”, sempre anunciado por um sino, como fizesse parte de algum comboio natalino. Iniciativas corajosas, como a demarcação de faixas para ônibus ou bicicletas, são recebidas com enorme entusiasmo. A saturação dos shoppings começa a levar as pessoas de volta aos parques e às praças. O ímpeto idealista de outros tempos talvez tenha arrefecido, mas ainda bate no nosso peito um coração: queremos fazer o bem, queremos construir uma cidade realmente melhor. É verdade que nos deixamos seduzir por falsos ídolos, mas, no fundo, temos consciência de que não estamos no caminho certo. A questão, então, é saber: como corrigir o rumo? Ainda é possível fazer de Curitiba uma autêntica capital ecológica? Apresento, a seguir, 15 sugestões nesse sentido – algumas voltadas ao poder público, outras à sociedade, de forma geral, pois da articulação dessas duas grandes forças depende o futuro da nossa cidade. Eis as propostas:

Se não nos reapropriarmos de Curitiba logo, talvez a percamos para sempre

Criação de uma regra clara para a criação de faixas exclusivas para ônibus, de modo que tais faixas deixem de ser uma concessão do poder público e transformem-se num direito do cidadão. Para dar início ao debate, proponho a seguinte regra: que seja criada faixa exclusiva para ônibus em qualquer via por onde passe, em média, ao menos um ônibus a cada 3 minutos, nos horários de pico.

Que sejam “tombadas” as “vias calmas” já existentes, ficando proibido reduzir calçadas ou destruir praças para aumentar ruas (é emblemática, nesse sentido, a luta pela preservação do “arquipélago de Camões”, no Hugo Lange). Ao mesmo tempo, que seja replicado, sistematicamente, o bem-sucedido experimento realizado na Avenida Sete de Setembro.

Nos fins de semana, que seja reservada a faixa mais à direita de todas as vias de mão única para bicicletas (exceto onde o ônibus, conforme a regra indicada acima, tiver prioridade). Não há dificuldade nesse ponto. Tradicionalmente, a faixa mais à direita é aquela reservada para veículos lentos.

Fechamento obrigatório de todos os estabelecimentos comerciais nos domingos, incluindo supermercados, restaurantes e shopping centers. O domingo, como notou o papa Francisco recentemente, “à semelhança do sábado judaico, é-nos oferecido como um dia de cura das relações do ser humano com Deus, com si mesmo, com os outros e com o mundo”. O repouso, acrescenta o papa, “é uma ampliação do olhar, que permite voltar a reconhecer os direitos dos outros”.

Isenção de IPTU para estabelecimentos alimentícios que não comercializem produtos de origem animal (medida de estímulo à alimentação vegetariana, tendo em vista o impacto positivo desse regime sobre a saúde e sobre o meio ambiente). Curitiba pode vir a tornar-se a capital vegetariana do Brasil.

Em disputas com cabos e fios de alta tensão, que as árvores (e os pássaros, consequentemente) tenham sempre preferência (ficando proibido, portanto, o corte de árvores, assim como as podas agressivas, que estão mutilando nossas paisagens).

Criemos o hábito de plantar árvores. As ruas estão sempre repletas de sementes. Frutas compradas ou colhidas têm sementes. É preciso aprender a germinar e fazer mudas. Basta procurar instruções na internet. Reflorestemos Curitiba. Não é preciso autorização para plantar árvores.

Precisamos reduzir, com urgência, a quantidade de lixo que geramos. É indispensável, para tanto, diminuir drasticamente o consumo de alimentos industrializados, que estão na origem da maior parte do lixo doméstico, por causa das embalagens. Isso implica ir com mais frequência à feira para comprar alimentos frescos, não embalados, preferencialmente orgânicos, utilizando sacola retornável. Não desprezemos a importância dos pequenos passos. Numa grande cidade, a soma de pequenos esforços pode gerar, no fim do dia, um imenso resultado. Até agora estivemos excessivamente focados em reciclagem. Temos de dar um passo adiante, procurando reduzir de forma drástica a quantidade de lixo gerado.

Que os animais selvagens hoje mantidos em confinamento no Passeio Público sejam levados a santuários. É vergonhosa para Curitiba a manutenção de animais selvagens em pequenas gaiolas, no Centro da cidade, em meio à poluição e ao barulho, correndo riscos diversos. Também o zoológico não oferece aos animais condições adequadas. Aplicando-se a mesma lógica à esfera privada, que seja iniciada campanha incisiva contra a manutenção de pássaros em gaiolas e peixes em aquários.

Façamos bom uso das floreiras e canteiros. O cultivo de flores, além de embelezar a cidade, desembrutece. Onde calçadas tiverem sido inteiramente cimentadas, tomemos a iniciativa de quebrar parte do calçamento para dar mais espaço à natureza.

Que cidadãos flagrados jogando lixo no chão, com destaque às onipresentes bitucas de cigarro, sejam penalizados com a obrigação de varrer as ruas durante seis horas, ao longo de até uma semana, para que compreendam o impacto de suas ações.

Que seja feito urgente mapeamento das edificações com valor histórico e/ou paisagístico, para tombamento e, quando necessário, restauro. Nossos bairros estão sendo descaracterizados pelas grandes empreiteiras. Cidade sem memória, é bom lembrar, não tem futuro.

Criação, nos bairros, de ruas sem saída e implantação de redutores físicos de velocidade para automóveis (lombadas, faixas para travessia elevada, paralelepípedos, no lugar do asfalto liso), de modo que crianças e cachorros possam voltar a brincar nas ruas. É chegada a hora de pôr fim à lei do mais forte.

Criação de réplicas da Rua XV em cada um dos bairros da capital, para fortalecer o pequeno comércio. Em áreas exclusivamente residenciais, poderia ser replicado o modelo estabelecido pelos admiráveis “jardins ambientais” do Cajuru e do Alto da XV, hoje infelizmente vulneráveis ao vandalismo e à criminalidade.

Proibição à construção de novos shopping centers e supermercados em Curitiba e Região Metropolitana. Podemos aplicar ao grande comércio o que se diz a respeito do eucalipto: ao redor deles nada cresce. São instrumentos de concentração de renda; consomem imensa quantidade de energia; geram engarrafamentos; promovem a padronização de hábitos de consumo, tornando a sociedade excessivamente homogênea; empobrecem a noção de espaço público; além de desvirtuarem o descanso e o lazer, vinculando-os ao consumo. Aplicando-se a mesma lógica, convém destacar que não é boa para a cidade a transformação de praças públicas em “shoppings” a céu aberto, por meio de pomposas “feiras gastronômicas”, que distorcem o democrático modelo estabelecido pelas tradicionais feiras de rua de Curitiba. As praças pertencem à população e não podem ser privatizadas nem por um dia.

Seria preciso falar, ainda, sobre a preservação das fontes de água, sobre o resgate dos rios transformados em esgoto, entre muitos outros assuntos. O dado básico, de qualquer forma, é o seguinte: Curitiba, há muitos anos, está caminhando na direção errada; a cada dia aumenta mais a distância entre o que deveríamos ou poderíamos ser e aquilo que efetivamente acontece. Esse gradual afastamento com relação ao ideal é grave, porque interesses vão se consolidando e maus hábitos vão se desenvolvendo. A correção de rumo, consequentemente, vai ficando mais difícil. Se não nos reapropriarmos de Curitiba logo, talvez a percamos para sempre.

Felipe Dittrich Ferreira é sociólogo.
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