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Sempre admirei o tio Anas, irmão caçula da minha mãe e general da polícia egípcia. Foi ele que ajudou a moldar meu senso de justiça e disciplina. Quando criança, eu sentia muito respeito e admiração por seu trabalho no combate aos bandidos. Durante toda a carreira, e ao contrário de muitos colegas, nunca acreditou estar acima da lei. Em um país onde a corrupção é praticamente um estilo de vida, ele se recusava a mostrar o distintivo para não ter de pagar a passagem de trem ou evitar as pequenas inconveniências do dia a dia. E realmente acreditava que a polícia estava ali para manter a ordem e servir o povo.

Até que um golpe se interpôs entre nós.

Depois que os generais do Egito depuseram o presidente Mohammed Morsi, em julho de 2013, eu decidi participar, tuitando, ao vivo, do enorme protesto passivo realizado no Cairo contra a restauração do regime militar depois de apenas dois anos e meio desde que a população se erguera contra ele. Em 14 de agosto daquele ano, a polícia e os soldados, incluindo a unidade do meu tio, cercaram e atacaram o acampamento de manifestantes. Pelo menos 800 pessoas morreram (algumas estimativas calculam um número superior a mil) e cerca de 4 mil ficaram feridas. Eu fui uma delas.

Naquela manhã, quando a polícia chegou para desbaratar o protesto, tomei um tiro no braço. Dias depois, os policiais invadiram a casa da minha família, à procura do meu pai, que era membro do governo Morsi, mas acabaram prendendo a mim. Algumas semanas depois, foi a vez dele.

Policiais invadiram a casa da minha família, à procura do meu pai, que era membro do governo Morsi

Eu contava que o tio Anas viria me resgatar. Enquanto mofava na solitária, ficava imaginando o momento em que derrubaria as paredes da prisão para salvar a mim, meu pai e nossos companheiros de tortura e abuso. Mas ele não veio.

Por que nos abandonou? Nos meses que antecederam o golpe, o Egito já estava dividido. Quem defendia a deposição de Morsi, incluindo seus apoiadores na imprensa estatal, desumanizara uma parcela grande da sociedade egípcia: a Irmandade Muçulmana e qualquer um que acreditava simpatizar com ela. Eu sentia a tensão aumentando a cada reunião familiar ou social, nas quais pequenas discordâncias assumiram uma nova virulência. A retórica antirrevolução disfarçava o anti-islamismo e as teorias da conspiração estavam por toda parte. A organização era considerada um inimigo diabólico de seus conterrâneos.

Não faço parte do grupo. Meu pai, autoridade respeitada em jurisprudência islâmica, passou a maior parte da vida fora do Egito, mas defendia uma visão progressista e moderada do islamismo. E, principalmente, nós dois éramos contra o golpe.

Só posso imaginar que meu tio achava que a estabilidade do país exigia que ele apoiasse a repressão ou que tenha ficado com medo de ser associado aos parentes então considerados dissidentes. Ele nunca veio nem me visitar, embora só sua presença certamente já pudesse facilitar as condições do meu confinamento.

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A cada insulto e cada sessão de tortura, meu ressentimento aumentava. Como é que meu tio conseguia dormir no conforto de sua casa sabendo que o sobrinho e o cunhado estavam enfrentando tamanha injustiça? Ele deveria ser melhor que o resto.

Para manter a sanidade, suprimi as lembranças do massacre e transformei a dor de ter sido preso em raiva do meu tio. E descontava na minha mãe, durante suas visitas breves, quando ela tentava justificar a atitude do irmão e, meio se desculpando, sugeria que talvez ele aparecesse quando as coisas “se acalmassem um pouco”. Eu culpava a ele e a todos os oficiais que trabalhavam para o regime; o ódio era a solução mais simples.

Uma greve de fome de 489 dias, uma campanha internacional e a pressão de Washington me ajudaram a recuperar a liberdade em 30 de maio de 2015. E o fato é que recebi mais solidariedade de estranhos que daqueles que eram sangue do meu sangue.

Poucos meses após minha soltura, meu tio ficou gravemente ferido em um ataque que se suspeitava terrorista em Sinai, onde estava aquartelado. Minha mãe implorou que eu me mostrasse solidário, mas me recusei a ligar. E quase me senti vingado.

Recebi mais solidariedade de estranhos que daqueles que eram sangue do meu sangue

Dois anos depois, o tio Anas ainda não conseguia andar. Já fazia quase um ano desde a cirurgia na coluna, resultado da fratura causada no atentado, e seus músculos não tinham se recuperado. Até que os exames revelaram um diagnóstico fatal: ele sofria de esclerose lateral amiotrófica, ou ELA, uma doença degenerativa.

Ainda não conseguia ligar para ele, mas ver o sofrimento da minha mãe me fez repensar muita coisa. E percebi que, na busca pela justiça, pretensioso, acabara sendo injusto comigo mesmo e meus familiares. Meu ressentimento me cegara para aquilo que era realmente importante: minha empatia e senso de humanidade. Eu desumanizara um dos meus parentes mais queridos, exatamente como ele fizera comigo. Fiquei furioso com ele por ter me abandonado na cadeia, mas, quando se tornou prisioneiro do próprio corpo, não pensei duas vezes em abandoná-lo.

No ano passado, fiz as pazes com meu tio. Foi a experiência mais difícil por que passei desde que fora solto. Liguei no primeiro dia do Eid, e pude perceber a animação ligeiramente assustada em sua voz ao nos cumprimentarmos. Ele começou a falar mais rápido que o normal, como se tentasse recuperar o tempo perdido. O peso do ressentimento que eu carregava desapareceu assim que a conversa passou a girar em torno de filhos, casamento, saúde e o famoso banquete que minha tia prepara todo ano para marcar o fim do jejum do Ramadã. Ao encerrar nossos cinco anos de silêncio, fui invadido pela mesma sensação de liberdade que me tomou quando fui solto. Logo depois, minha mãe me disse que aquele telefonema lhe tinha feito tão bem que ele resolveu acompanhá-la na visita ao meu pai, ainda preso.

Meu pai era membro do governo de Morsi; fui preso por meu ativismo; meu tio foi policial sob vários regimes; vários outros familiares eram generais do Exército ou políticos sob o governo do ex-presidente Hosni Mubarak. Se minha família é atípica? Sob vários aspectos, de jeito nenhum. A maioria se dividiu por causa do racha político.

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Com uma violência estatal cada vez maior e a ausência de qualquer simulacro de justiça, a sociedade egípcia está além da polarização; esfacelou-se. A desumanização e a segmentação vão além dos islamitas; hoje, qualquer um que ouse desafiar a situação é demonizado. Muitas famílias continuam estremecidas, as diferenças políticas parecem ter se tornado existenciais, as mesas de jantar ainda têm muitas cadeiras vazias. Muitos casamentos, aniversários e enterros foram perdidos por causa da prisão, do exílio ou da exclusão. De alguma forma, o ódio, a revolta e a vingança conseguiram sobrepujar a decência humana.

Não sei como o Egito vai se recuperar, mas tenho para mim que o processo pode começar quando cada pessoa descobrir a força interna para permitir que o amor e a esperança superem o ódio e a dor. Mesmo que eu talvez nunca mais veja meu tio favorito – estou proibido de voltar ao Egito e ele não pode vir aos Estados Unidos –, um único telefonema provou ser o antídoto para o veneno do qual nós dois nos alimentamos durante tanto tempo. Meu tio e eu resgatamos a humanidade que nos foi arrancada com um simples ato de amor.

Mohamed Soltan é fundador da Freedom Initiative, um grupo de defesa para prisioneiros de consciência.
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