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Covid-19: vacinação é assunto político ou caso de Justiça?
| Foto: BigStock

Em recente declaração, o presidente da República afirmou que “não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar vacina”, criticando a judicialização de uma matéria supostamente política. A fala presidencial abre espaço para um importante debate sobre as competências e possibilidades de cada poder, à luz de uma dinâmica republicana harmônica, equilibrada e necessariamente eficaz ao cidadão, tanto sob aspecto democrático, como na tutela jurídica de direitos fundamentais.

Para começo de análise, sempre oportuno examinar a diretriz traçada na Constituição Federal. Especificamente, o artigo 196 é categórico ao dispor que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Como se vê, mais que um direito do povo, a saúde é um dever do Estado que não permite válvula de escape ou placebos de ocasião. Nos exatos termos constitucionais, as ações governamentais devem promover a “redução do risco de doença e de outros agravos”. Ou seja, todas as medidas políticas que potencializem o risco de contágio ou a continuidade da epidemia, expondo indevidamente a saúde dos cidadãos, são e serão ostensiva e abertamente inconstitucionais.

Sem cortinas, estamos diante de um dever positivo incontornável; cabe à política, livre de fanfarronices, agir com seriedade, afinco e rigor científico para a pronta e plena proteção da saúde do povo, promovendo todos os atos necessários à máxima efetividade constitucional. Mas, se o critério da política for insatisfatório ou insuficiente, poderão os tribunais ser chamados para a fiel proteção da Lei Fundamental da República?

A resposta é decididamente afirmativa. Nos termos do artigo 5.°, XXXV, da Constituição, a “lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito” e, sendo a saúde constitucionalmente tutelada, a competência judicial é absolutamente natural. Isso, todavia, não está a significar que os tribunais possam substituir a política, como representantes principais da democracia. Não, definitivamente, não. O espaço de conformação judicial é limitado. No delicado equilíbrio republicano, as competências de cada poder, antes de reciprocamente elisivas, são geneticamente complementares, devendo somar-se na interpretação e finalidades que melhor realizem os desideratos constitucionais.

O inigualável Pedro Lessa, em seu clássico Do Poder Judiciário, após pormenorizada análise da doutrina americana, bem leciona que “a violação de garantias constitucionais, perpetrada à sombra de funções políticas, não é imune às ações dos tribunais”. Ainda, em precedente histórico do Supremo Tribunal Federal datado de 1951, em voto condutor do ministro Luiz Gallotti, veio a ser consagrada a tese de que “a discrição legislativa ou administrativa não pode exercitar-se fora dos limites constitucionais ou legais”.

Resta claro, portanto, que a definição da melhor política de saúde pública, inclusive no tocante à vacinação populacional, é da competência primária do Executivo que, à luz das circunstâncias, poderá contar com o apoio do Legislativo para validação normativa da medida governamental a ser promovida no território brasileiro. No entanto, caso a escolha política se revele manifestamente atentatória à Constituição, poderão os tribunais – e especialmente o Supremo Tribunal Federal –, mediante fiel observância do devido processo legal, ser chamados a garantir a legalidade positiva contra atos governamentais insuficientes, descabidos ou extravagantes.

E se eventualmente surgir uma vacina com as comprovações científicas de rigor e o governo brasileiro, por orgulho, bestialidade ou ignorância, se negar a promover as medidas de saúde pública cabíveis, poderá o Supremo determinar o impulso dos atos necessários à proteção da saúde pública?

Ora, como bem dizia o Padre Antonio Vieira, a “omissão é um pecado que se faz não fazendo”. Por assim ser, verificada eventual prática omissiva ou injustificada da administração, poder-se-á, sim, provocar o STF para instar o Executivo a adotar medidas urgentes ou inadiáveis, respeitando-se sempre o contraditório e a hábil diplomacia institucional que deve presidir os altos debates constitucionais entre poderes republicanos.

Dessa forma, em vez de prematuras preocupações com o Judiciário, o presidente da República deveria apenas se preocupar em bem governar o Brasil. Aliás, não existe melhor antídoto ao ativismo judicial que o governo sério, competente e visceralmente responsável em suas obrigações e deveres públicos. No cair da tarde, a vida ensina que, quando a política democrática atua eficazmente, a lei não precisa de tribunais para se fazer valer. Agora, quando a política é ruim, faltam juízes no maremoto de ilegalidades, abusos e injustiças.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr., advogado, é conselheiro do Instituto Millenium.

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