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Em uma série de lectures proferidas em 1943, e lançadas no mesmo ano no livro A Abolição do Homem, C.S. Lewis (1898-1963) nos apresenta uma série de insights que se mostraram uma robusta defesa não apenas da “lei natural”, mas, mesmo, da ideia de “natureza humana”. Tal ideia serve como pilar para concebermos, por exemplo, que há culturas mais humanas, valores mais humanos, etc. Em suma, há culturas que instanciam mais adequadamente a “natureza humana”.

No livro, especialmente em seu apêndice, C.S. Lewis faz uma incursão em diversas culturas, em seus textos ancestrais, para demonstrar que podemos encontrar em todas elas alguns valores comuns, o que demonstraria que tais valores não são oriundos da cultura, relativos a certo grupo em certo lugar e em um dado tempo. Nesse sentido, remontando a textos que vão desde o Livro dos Mortos (Egípcio antigo), passando pelo Nórdico Antigo, pelo Babilônio, pelo Hindu, pelo Chinês, pelo Judaísmo, pelas tradições Grega, Estoica, Romana, etc., ele logra demonstrar que em todas elas algumas “virtudes” simplesmente brotaram da natureza humana mesma.

Caridade, deveres em relação aos pais e aos mais velhos, justiça, veracidade/honestidade, magnanimidade, entre outras, seriam virtudes que surgiram “desde o interior do homem”, não de seu entorno. Tal insight mostra-se, hoje, fundamental para entendermos uma pesquisa como aquela intitulada Shared Virtue: The Convergence of Valued Human Strengths Across Culture and History, publicada em 2005 no periódico Review of General Psychology. Essa pesquisa vem ao encontro de alguns insights de C.S. Lewis. Nela, os autores partem da constatação de que muitos manuais de psiquiatria focam sobretudo nas fraquezas (vícios) humanas, nas “desordens mentais”. Noutros termos, os manuais de psiquiatria atentam “muito para o que está errado com as pessoas, mas e quanto ao que está certo? A psicologia tem por muito tempo ignorado a excelência humana, em parte porque nos falta um ponto de partida: uma classificação empiricamente informada e consensual das virtudes humanas”.

A psicologia tem por muito tempo ignorado a excelência humana, em parte porque nos falta um ponto de partida

A partir desse ponto de partida os autores adentraram a tradição escrita do sul da Ásia, da China e do Ocidente: Confucionismo, Taoísmo, Budismo, Hinduísmo, Filosofia Grega Antiga, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Dentre as descobertas, verificou-se que em todas as oito tradições podem ser encontradas algumas “virtudes” (forças) fundamentais, a saber: coragem (bravura, perseverança, etc.), justiça (cidadania, espírito de equipe, etc.), humanidade (amor, benevolência, cultivo da cortesia e da deferência, bem como da fidelidade, isto é, virtudes que manifestam uma preocupação com o outro, etc.), temperança (autocontrole, humildade, perdão, etc.), sabedoria (criatividade, curiosidade, juízo, etc.) e transcendência (esperança, espiritualidade, etc.).

Isso sugere fortemente que há virtudes, ou “forças” (strengths), que não são “inventadas”, mas emergem da natureza humana mesma, algo já sugerido, como mencionei preliminarmente, por C.S. Lewis no livro de 1943. Os autores da referida pesquisa, cabe notar, não estão a falar da “lei natural”, como o faz Lewis. Em verdade, seu ponto de vista é o da antropologia evolutiva. Mas o que quero sublinhar aqui é o acordo entre o insight de C.S. Lewis e a antropologia evolutiva nesse ponto.

Independentemente do pressuposto, há uma evidência que encontra base na experiência: há, sim, uma natureza humana e ela se exterioriza, ainda que a partir de um processo de seleção natural, algo já sugerido por Charles Darwin mesmo (1809-1882) em The Descent of Man and Selection in Relation to Sex (1871), especialmente quando ele trata das faculdades morais e sociais e nos diz que há “qualidades sociais”, como “simpatia”, “fidelidade” e “coragem”, produtos da seleção natural auxiliada pelo “hábito adquirido”: “Quando duas tribos de homens primitivos, vivendo na mesma região, competiam, se uma delas incluía (sendo as demais circunstâncias iguais) um grande número de membros corajosos, confiáveis e capazes de simpatia, os quais estavam sempre prontos para alertar os demais para o perigo, para ajudar e defender um ao outro, essa tribo seria, sem qualquer dúvida, bem sucedida e conquistaria a outra. Tenha-se em mente o quão importante devem ter sido, nas batalhas sem fim entre os selvagens, a fidelidade e a coragem. As vantagens que têm soldados disciplinados sobre hordas indisciplinadas são oriundas principalmente da confiança que cada homem tem em seus companheiros. (...) Pessoas egoístas e litigiosas não irão apegar-se, e sem coesão coisa alguma pode ser efetuada. Uma tribo possuindo as qualidades acima em um alto grau se espraiaria e seria vitoriosa sobre outras tribos”.

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Nossas convicções: A dignidade da pessoa humana

Portanto, seja do ponto de vista da “lei natural”, seja do ponto de vista da antropologia evolutiva, temos que há culturas (humanamente) melhores que outras. Por quê? Ora, porque elas oferecem mais oportunidades para que atualizemos nossa natureza. De certa forma, o que os autores da referida pesquisa estão indicando é aquilo que foi sistematizado pelos gregos na antiguidade, aquilo que é, em verdade, um princípio de senso comum: nossa felicidade (plena realização humana) está alicerçada sobre nossa natureza. Se a realizamos, alcançamos o “florescimento humano” (eudaimonia). Do contrário, fenecemos (individual e socialmente).

Nesse sentido é que C.S. Lewis nos fala (e isso em 1943) da “abolição do homem”. Segundo ele, nos rebelarmos contra certos valores expressa a “rebeldia dos galhos contra a árvore: se os rebeldes pudessem vencer, descobririam que destruíam a si próprios”. Dessa maneira, diante desse quadro de “virtudes”, percebemos que uma sociedade “melhor” é aquela que está mais em acordo com nossa natureza tipicamente humana. Sim, aquelas “virtudes” apontam para algo em nós que nos distingue das demais criaturas. Isso é o que se convencionou chamar de “especismo” (um conceito de péssimo gosto, aliás), que significa: não somos nem meros vegetais (embora tenhamos funções vegetativas), nem meros animais (embora tenhamos funções animais), mas sujeitos capazes de liberdade e racionalidade. Assim, uma cultura que nega nossa racionalidade nega nossa liberdade e nos conduz à barbárie, ao fim da humanidade (eis a “revolta dos galhos com a árvore”).

Isso nos oferece, pois, um quadro do que enfrentamos hoje (muitas vezes, aliás, dentro da Universidade, como indiquei em outro artigo aqui na Gazeta do Povo). Por essa razão, as “fraquezas” das quais os autores da pesquisa nos falam são identificadas com “desordens mentais”. Assim, covardia, intemperança, estupidez, desesperança, egoísmo, mundanalidade, solidão, etc. são fraquezas, vícios que se inserem no quadro de “desordens”, pois indicam exatamente isso: o abandono da “racionalidade prática” e o domínio dos sentimentos, das emoções, da mera senciência, etc. Os vícios, sua primazia sobre as virtudes, são a causa das desordens referidas na pesquisa mencionada, porque vão contra aquilo que nos torna humanos. E o seu domínio nos afasta da “plena realização humana”.

Se não reconhecemos que há culturas “melhores” do que outras , simplesmente “dissociamos” a cultura da natureza humana

Isso explica uma parte considerável dos flagelos que enfrentamos hoje. Se não reconhecemos que há culturas “melhores” do que outras (independentemente de sua localização geográfica), simplesmente “dissociamos” a cultura da natureza humana. De um ponto de vista “humano”, culturas que fomentam virtudes fundamentais, como as cardeais (justiça, coragem, sabedoria e temperança) e, mesmo, as teologais (fé, esperança e caridade) são “melhores”, pois promovem aquilo que é essencialmente humano, assegurando, dessa forma, nosso “florescimento”. E isso porque tais virtudes, insisto, não foram “inventadas”, nem pelos filósofos nem pelos teólogos, mas “desabrocharam” (e seguem desabrochando) desde a nossa natureza mesma, como forma de nos levar à plena realização enquanto humanos. São princípios de senso comum que qualquer sujeito, ao refletir sobre a ação, reconhece como oportunidade de realizar-se. A civilização foi simplesmente se apercebendo dessas virtudes conforme elas emergiam de nossa natureza, em nossos atos. E com isso foi edificada nossa cultura, nossa civilização. Nossas instituições, inclusive religiosas, simplesmente se apropriaram desses aspectos e os passaram a proteger, com códigos legais, morais, etc.

Somente podemos falar em “progresso” civilizatório a partir disso. Portanto, há, sim, culturas (humanamente) “melhores” que outras. Imaginemos o seguinte: assim como certamente poderíamos olhar com alguma nostalgia e curiosidade para os primeiros esboços de William Shakespeare, quando este ainda estava aprendendo a escrever, reconhecemos que é justamente sua obra madura que representa seu legado maior para o Ocidente. É em sua obra madura que está a beleza em sua forma mais elevada. Algo similar ocorre com as civilizações. Algumas começaram esboçando valores, instituições, etc., e nos deixaram como legado a civilização que temos hoje. Algumas ainda são incipientes e outras simplesmente deixaram de existir. A virtude da sabedoria, que impulsionou nossos ancestrais simiescos, se desenvolveu e culminou, por exemplo, na Revolução Científica. Passamos de uma figura simiesca no passado, intrigada com a queda de um objeto, a, por exemplo, um Isaac Newton, que propôs a lei da gravitação universal. Como não ver nisso progresso civilizatório?

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Uma coisa é estudarmos nossos ancestrais. Outra seria considerarmos que devemos voltar a viver como eles ou, mesmo, a enaltecer sua cultura comparativamente à nossa, rejeitando nosso avanço. Estamos, hoje, em um mundo mais ‘humano’ do que estávamos no passado. Mas disso não se depreende que não possamos decair. Por essa razão, os autores do referido estudo propõem o fomento daquelas virtudes, ou “forças”, tipicamente humanas, ligadas à nossa racionalidade. Dado o propósito deles, essa seria a forma mais apropriada (“humana”) de combatermos as “desordens mentais”. Noutros termos, sujeitos “virtuosos” seriam mais felizes (humanamente realizados), por serem mais “humanos”, isto é, por fomentarem as “forças” que solapam as fraquezas.

Pensemos analogicamente e apliquemos essas virtudes, seu fomento, às comunidades humanas. Uma comunidade na qual tais virtudes estão enraizadas é uma comunidade que fomenta a “plena realização humana”. Por outro lado, quando uma cultura rejeita tais virtudes, ela nos conduz à barbárie. Muito se depreende dessa conclusão, a qual nos permite compreender muitos dos problemas (individuais, como as “desordens mentais”, e sociais, como a degenerescência cultural e educacional) que enfrentamos hoje. Resgatar as virtudes deveria ser uma questão de “políticas públicas”.

Carlos Adriano Ferraz é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Doutor em Filosofia pela PUC-RS, fez estágio doutoral junto ao programa de pós-graduação em Filosofia da State University Of New York (SUNY) e foi professor visitante da Universidade de Harvard.
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