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 | Robson Vilalba
| Foto: Robson Vilalba

O carro-chefe na recente grita contra a decisão da Justiça sobre a Resolução 09/1999 do Conselho Federal de Psicologia tem sido o conceito memético da “cura gay”. Mas o que se esconde sob essa cortina de fumaça psicopolítica?

Em inúmeras entrevistas encomendadas, pôde-se ouvir com nitidez que a inclinação homoafetiva, esse modo de objetivar o desejo sexual que está na base da autoidentificação homossexual, seria algo como um determinante definitivo e irrefutável da identidade da pessoa. Lugar comum: se o sujeito tem orientação homoafetiva, ele “é gay”, mesmo que esteja no armário. Ele é o que sente sexualmente; ele é essa afetividade. Se negar seus sentimentos em favor de “regras ultrapassadas”, será uma pessoa “inautêntica” e eventualmente doente.

Ora, essa compreensão da identidade pessoal é seguramente falsa. A afetividade sexual é um dos principais constituintes da identidade pessoal, mas seu lugar e função não são fixos. Há tantos modos de organização do eu quanto há horizontes espirituais e mapas morais.

No clássico As Fontes do Self, o filósofo Charles Taylor demonstrou que o Self se constitui num espaço de valores, orientando-se a partir de um mapa centrado em uma ou outra ideia sobre o que teria valor absoluto: um “hiperbem”. Esse hiperbem, variável de pessoa para pessoa, dá sentido à existência ao estabelecer a localização do indivíduo e a direção a tomar em sua jornada espiritual.

A afetividade sexual é um dos principais constituintes da identidade pessoal, mas seu lugar e função não são fixos

Uma – mas não a única – forma de organização do Self é o que ele denomina “individuação expressiva”, ou expressivismo: a visão de que o acesso ao significado da vida se dá por meio do contato e da expressão do que está “dentro”, no “coração” da pessoa. E a mediação principal dessa vitalidade interior é o sentimento: quanto mais fiéis somos ao sentimento, mais autênticos nós somos, e mais significado a nossa vida tem. Encontra-se aí uma das fontes do moderno centramento subjetivista.

O expressivismo emerge no movimento romântico do século 19, e terá profundo impacto na mente contemporânea, especialmente por meio das artes e da psicologia moderna. E sua plausibilidade aumentará muito quando a psicologia é descoberta pelas corporações modernas a partir dos anos de 1920 como meio de elevar tanto a produtividade quanto o consumo, como mostrou a socióloga Israelense Eva Ilouz. A emergência do capitalismo afetivo dá imenso reforço civilizacional à emergência do que ela chama de Homo sentimentalis.

Mas, antes dela, Philip Rieff, seminal intérprete de Freud, já observara a constituição ao longo do século 20 de um tipo novo e singular de narrativa de identidade, um novo paradigma de Self, que ele chamou de “homem psicológico”. O homem psicológico é o indivíduo avesso a desafios morais e absolutamente ocupado com seu próprio bem-estar, para o qual tradições, regras sociais e mesmo qualquer alegada ordem objetiva de bens seriam sempre prisões.

Leia também:Outros caminhos para se pensar a identidade de gênero (artigo de Aender Borba, publicado em 2 de outubro de 2017)

Mas, como Rieff observou com clareza, vários modelos antropológicos já emergiram na psicoistória ocidental. O homem psicológico certamente se sentirá “doente” se não se ocupar do trabalho interior de “se sentir bem”; mas isso não valeria do mesmo modo para o Homo oeconomicus na aurora do capitalismo, ou para o Homo religiosus medieval. Certamente não valeria para Sócrates.

Com muita perspicácia, Charles Taylor notou que a autoexpressão afetivo-sexual pode ser um hiperbem e um centro organizador da identidade de uma pessoa, e não ser assim para outra.

O ponto é terrivelmente importante. Uma visão divergente sobre hiperbens pode não “converter” os desejos sexuais de alguém, mas certamente muda o seu significado. Pois a identidade tem sua sede no espaço moral, no campo da liberdade. Dependendo do meu mapa moral e de meu destino, significo diferentemente a minha existência e penso diferentemente sobre onde estou.

Imagine duas pessoas numa estrada à beira do mar. Ele tem uma bicicleta, e eu tenho um barco. E então recebemos um mapa, segundo o qual o nosso destino – que aqui faz as vezes de hiperbem – encontra-se no alto da montanha próxima. Imediatamente sinto-me em desvantagem. Com a bicicleta ele poderá chegar rapidamente ao topo. Mas o que farei com um barco? É claro que posso recusar o mapa e acreditar no evangelho da autoexpressão: “o que importa é viver o que sou”. Mas navegar não me levará ao topo da montanha. A questão não reside nos desejos, mas nos destinos.

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O que significa um desejo, uma inclinação homoafetiva ou heteroafetiva, ou bissexual? Em si mesmos, absolutamente nada. Eles significarão algo dentro de um mapa de sentido. E o que pode o CFP dizer a respeito disso? Absolutamente nada. A não ser que ele pretenda oferecer ex cathedra um mapa de sentido para a existência, contrariando suas próprias resoluções.

E exatamente aqui encontra-se a farsa: com suas posturas, o CFP reforça e naturaliza silenciosamente o modo expressivista de autoconstituição, elevando-o a uma espécie de condição default, e a existência social de modos de constituição da identidade diferentes do Homo sentimentalis é cinicamente negada.

Há, no entanto, uma multidão de crentes e incréus para os quais essa religião oficial não faz nenhum sentido. Para não poucos dentre eles, o caminho da identidade não é a “autoexpressão”, mas a “imitação moral”.

A razão pela qual os tais continuarão ignorando os psicólogos que os ignoram é que para eles há uma realidade externa cujo significado não é meramente imposto pelo indivíduo, como se projetado numa tela branca. O significado está lá, uma ordem de bens e de finalidades se impõe à mente. Para eles, o mundo real nos interpela e nos responsabiliza, e temos o privilégio e o dever de responder. A identidade não lhes surge de uma alegada autoexpressão sentimental autêntica, mas de uma reciprocidade na qual a natureza, a sociedade, a história, o outro, e – por que não? – Deus já estão lá, e participam da minha autodefinição.

A pergunta, enfim, é inevitável: se “biologia não é destino” para o humano, porque a afetividade o seria?

Guilherme de Carvalho, teólogo e mestre em Ciências da Religião, é diretor de L’Abri Fellowship Brasil.
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