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Cyberbullying: o novo formato de uma velha questão
| Foto: Pixabay

Na década de 60, o roteirista e produtor americano Gene Roddenberry deu início ao universo ficcional de Star Trek, que até hoje encanta gerações. No contexto criado por Roddenberry, a humanidade desenvolveu a tecnologia das viagens espaciais mais rápidas que a luz após uma fase pós-apocalíptica, em meados do século 21. As histórias de Star Trek, presentes em séries de televisão, mais de dez filmes para o cinema e centenas de livros, descrevem as aventuras de seres humanos e alienígenas que servem na Frota Estelar da Federação. Nesta época, a humanidade já teria superado muitos de seus defeitos, erradicado doenças e a pobreza e estaria dedicada à exploração de novos mundos.

De uma maneira geral, os temas abordados nos episódios estão relacionados a temáticas que incluem guerra e paz, autoritarismo, imperialismo, conflito de classes, racismo, direitos humanos, sexismo e papel da tecnologia. Muitos destes debates dizem respeito à realidade dos anos 60 e também das épocas posteriores, de forma que valores e questões de diferentes épocas são retratadas nas séries com o passar do tempo.

Mais de 40 anos depois, a raça humana ainda não dominou as viagens mais rápidas que a luz; por outro lado, consegue, dentre outras coisas, se comunicar em frações de segundo, de maneira até mais eficaz que a então utilizada pelo dr. Spock e pelo capitão Kirk com seu “comunicador” – algo semelhante aos celulares que utilizamos atualmente.

Virtual ou não, o assédio moral é um fenômeno perverso, que deve ser estudado, discutido e trazido à luz

O espanhol Manuel Castells é um dos destacados autores que propõem uma série de reflexões sobre os impactos da revolução tecnológica na vida das pessoas nos mais diferentes aspectos de suas vidas. Segundo Castells, a revolução tecnológica é caracterizada não pela centralidade de conhecimentos e informações, mas sim pela sua aplicação para a geração de conhecimentos e dispositivos de processamento e comunicação da informação, num ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso.

Candidatos a vagas de emprego participam de processos seletivos para vagas em qualquer lugar do planeta fazendo testes e entrevistas via internet. O e-learning possibilita atualização a profissionais, nos horários e locais que lhes forem mais convenientes, inclusive em suas próprias casas. Grandes negócios podem ser fechados num click do mouse. Leilões virtuais podem preservar a identidade de clientes e participantes. Informações sobre fusões e aquisições podem chegar em tempo real a um número incontável de pessoas praticamente ao mesmo tempo... em poucos instantes.

Da mesma maneira que um líder pode (mas não deve) chamar a atenção de um subordinado em público, de maneira deselegante ou até mesmo violenta, é possível que esta mesma “chamada de atenção” ocorra por e-mail, com cópia (oculta ou não) para outros superiores hierárquicos, colegas e, em situações mais extremas, para toda a empresa, se for o caso. Discussões ou trocas de ideias mais calorosas agora podem ser realizadas por e-mail. O tom agressivo da voz pode agora ser destacado com a utilização de letras maiúsculas, que na linguagem da internet equivalem a gritar, além, é claro, dos usos e abusos dos sinais de exclamação, dentre outros.

As práticas de assédio com a utilização da internet e seus diferentes aparatos recebem a denominação de cyberbullying. O termo, ainda não muito explorado, já vem encontrando espaço tanto para se referir às práticas de assédio no ambiente escolar quanto no ambiente organizacional. Esta forma de violência apresenta particularidades que a diferem das agressões presenciais e diretas, podendo transformá-la num fenômeno ainda mais cruel, uma vez que, diferentemente do assédio presencial, as agressões virtuais podem se abrir a um número muito maior de pessoas, fato incrementado pela velocidade de propagação das informações nos meios virtuais, que muitas vezes invadem os âmbitos de privacidade e segurança das pessoas.

Tão hostis quanto as práticas presenciais de assédio, os “novos formatos” fornecidos pelos recursos tecnológicos devem merecer a atenção de todos os envolvidos, seja na arena organizacional, seja no ambiente escolar ou em quaisquer outras instâncias em que este fenômeno possa se manifestar, de forma que práticas desta natureza sejam prevenidas, coibidas e combatidas, uma vez que suas consequências afetam negativamente todos os envolvidos.

Também é pertinente lembrar que durante a história do desenvolvimento humano, por diversas vezes a humanidade se deparou com grandes revoluções, que tiveram o poder de alterar a configuração da vida do homem em diferentes aspectos. Não há como negar, portanto, que as revoluções ligadas ao desenvolvimento tecnológico estão entre aquelas que maior impacto conferiram (e continuam conferindo) à vida das pessoas. Não há como negar, também, que esta é, ainda, uma revolução em curso, e que outras certamente virão.

É fato que o mundo informatizado não servirá de substituto para o mundo físico, mas também é fato que ele poderá servir de canal para ações e decisões importantes que envolvem forças como o amor, a confiança e o medo. Virtual ou não, o assédio moral é um fenômeno perverso, que deve ser estudado, discutido e trazido à luz, no sentido de que seja tratado e prevenido de maneira adequada pelas organizações.

Cabe, portanto, lembrar mais uma vez dos personagens de Star Trek. Viajando mais rápido que a velocidade da luz e dispondo de uma série de fantásticos aparatos tecnológicos, o capitão Kirk, dr. Spock e os outros tripulantes da Enterprise estão sempre às voltas com questões profundamente humanas, que continuarão sempre presentes, ainda que em contextos absolutamente diferentes. Estas questões relacionam-se ao poder, à vaidade, ao bem e ao mal, ao justo e ao injusto, e fazem parte do ambiente organizacional e de qualquer interação entre pessoas – onde quer que elas estejam. Hoje e sempre, assuntos desta natureza precisam ser vividos e tratados de maneira adequada, humana e digna, não importa quanta tecnologia tenhamos à disposição.

Miriam Rodrigues, doutora em Administração de Empresas, é docente na área de Gestão de Pessoas e Comportamento Organizacional e coordena os cursos de Graduação Tecnológicos EaD do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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