A famosa Batalha de Solferino, que está na origem do humanitarismo moderno, travou-se em 24 de junho de 1859, no norte da Itália, opondo os exércitos aliados da Sardenha e da França contra o exército da Áustria-Hungria, no decurso da luta pela unificação da Itália. Mais de 300 mil soldados atiraram, pisotearam, golpearam com baionetas e cortaram as gargantas de seus inimigos no que fora a maior das batalhas desde a de Leipzig, em 1813. Após 15 horas de carnificina e derramamento de sangue, resultaram mais de 40 mil vítimas mortais e feridos.
Solferino constituiu um marco histórico para o futuro da condução de ações militares. Henri Dunant, cidadão suíço que estava na região a negócios, testemunhou os combates e foi motivado pelo horrendo sofrimento dos soldados feridos a reunir mulheres das aldeias próximas para que prestassem auxílio humanitário às vítimas da guerra, independentemente de sua nacionalidade ou da pertinência a um ou a outro exército. Em 1862, publicou o famoso Recordação de Solferino, onde retratou suas memórias e lançou as premissas do que viria a ser o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), organização neutra e imparcial, e guardiã do que mais tarde tornou-se o "Direito Internacional Humanitário" (DIH) ramo jurídico que estabelece regras a serem respeitadas em tempos de guerra. Henry Dunant foi o primeiro jornalista a cobrir uma guerra e, em 1901, recebeu o primeiro Prêmio Nobel da Paz, em reconhecimento ao que foi descrito como a "maior conquista humanitária do século 19".
Neste ano de 2009, em que a Batalha de Solferino completa 150 anos, é importante refletirmos sobre o impacto do Direito Internacional Humanitário na condução das guerras que continuam a ensanguentar diversas partes do globo e que deixaram cerca de 90 milhões de mortos no século 20. A principal preocupação desse ramo do direito reside na distinção entre combatentes e população civil, com vistas à proteção desta.
Não obstante recente relatório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, publicado por ocasião do aniversário de Solferino, revela o impacto perturbador da guerra sobre os civis, com número alarmante de mortos e feridos civis nos países atingidos por conflitos armados. Dados impressionantes deflagram que o deslocamento, a separação de familiares e a falta de acesso às necessidades básicas estão entre as experiências mais comuns e os maiores medos das vítimas. Entre as pessoas diretamente atingidas por hostilidades, 56% declararam que haviam sido obrigadas a deixar suas casas por causa de combates, enquanto que quase a metade afirmou ter perdido o contato com um ente querido. Uma entre cada cinco pessoas declarou ter perdido seu meio de sobrevivência.
Intitulado Nosso Mundo. Visões do Terreno, o relatório do CICV analisa as experiências pessoais, necessidades, preocupações, expectativas e frustrações de milhões de pessoas que integram as populações atingidas por conflitos em oito países: Afeganistão, Colômbia, República Democrática do Congo, Geórgia, Haiti, Líbano, Libéria e Filipinas, possibilitando uma visão abrangente de como as vítimas de conflitos armados são atingidas.
Lamentavelmente, quando comparamos a Solferino de 1859, em que apenas um civil foi morto, às diversas "Solferinos de hoje" no Paquistão, no Iraque, no Sri Lanka, na Faixa de Gaza ou na Somália, observamos que a guerra moderna deixa sequelas físicas e emocionais mais generalizadas entre a população civil.
A drástica transformação da tendência nos conflitos armados com as maiores consequências recaindo sobre os civis é muito preocupante e indica claramente que as partes beligerantes devem prestar maior respeito ao Direito Internacional Humanitário e às normas da guerra. Os civis e suas propriedades devem ser sempre poupados e protegidos.
No século 20 foi possível desenvolver o DIH nascido no século 19, olhando a humanidade com a perspectiva da Inter arma caritas que descansa a consciência em gestos de solidariedade. Temos de lutar por um mundo diferente no século 21, sem "novos Solferinos" ou, no mínimo, isolando a população civil dos efeitos devastadores da guerra.
Larissa Ramina, doutora em Direito Internacional pela USP, é professora do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e professora da UniBrasil.
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