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Se não desse ouvido a seu instinto, dois anos atrás o presidente Lula teria arrumado contra seu governo a maior onda de repulsa e antipatia, com desdobramentos imprevisíveis para ele na campanha pela sua reeleição no ano seguinte, durante a votação da execrada Medida Provisória 232. Seria o terceiro golpe da Receita Federal no governo Lula para aumentar a carga tributária das empresas de prestação de serviços, e desta vez feri-las de morte.

Foi como se uma gota d’água transbordasse o copo da paciência dos setores sociais de classe média que mais pagam impostos no país e que até então reagiam de maneira discreta, normalmente canalizando sua insatisfação apenas pelo voto, como se não tivessem princípios ou temessem represálias, abdicando aos grupos organizados, quase sempre de esquerda, o espaço legítimo dos protestos de massa.

A reação extravasou o campo dos donos de firmas individuais, as PJ, de pessoa jurídica, envolveu as grandes entidades empresariais de vários setores e fez Lula sentir que o protesto era mais amplo que a má vontade habitual dos contribuintes contra o Fisco – já que ninguém gosta de pagar impostos –, mas um ponto de inflexão no crescimento contínuo da carga tributária. Em síntese, um basta!

Lula mandou o Ministério da Fazenda recolher a MP 232 e deu por esgotado o assunto. Se fosse a voto no Congresso, o governo teria colhido uma derrota humilhante. O presidente agiu com sensatez, e conseguiu reeleger-se inclusive com os votos da classe média.

Agora, sua presença é outra vez exigida para arbitrar, por mais louco que seja, uma variante do mesmo assunto que se supunha morto e enterrado. Na prática, o corpo da Receita, aliado ao ministro do Trabalho, Luiz Marinho – e por seu intermédio à CUT –, quer jogar Lula contra a parede, como se um presidente pudesse ser acuado pelos subordinados hierárquicos. Se Lula ceder, significa que seu veto à 232 foi oportunismo, o que pode abalar a confiança em suas atitudes, ou mostrá-lo vacilante. Ambas as hipóteses são ruins.

Arrogância do Fisco

O setor fiscalista do governo faz de tudo para que Lula vete a emenda anexada ao projeto de lei que cria a tal da Super-Receita (fusão do Fisco federal com a área de arrecadação do INSS). Numa temeridade, que denota arrogância, executivos da Receita chegam a declarar que Lula já decidiu o veto, quando se sabe que ele ainda procura formar um melhor juízo sobre o tema.

Proposta no Senado, a emenda foi mantida na Câmara pela expressiva maioria de 304 a 146 votos, apesar da oposição do PT. Ela faz prevalecer a prerrogativa constitucional de que à Justiça do Trabalho e a mais ninguém cabe decidir se há vinculo de trabalho entre empregador e prestador de serviço. Não é uma nova regra. Só uma ação disciplinadora, já que a Receita, desde a derrota da 232, não se deu por vencida e passou a multar as partes, sob a alegação de que ambas cometeriam elisão fiscal, um ardil para recolherem menos tributos.

A nova, velha Receita dá demonstração de que os superpoderes que ganhou talvez não lhe façam bem e o Congresso precise criar algum conselho externo que monitore os seus atos. Mas seu papel, dentro do razoável, é arrecadar e impedir a sonegação. É só o que tem por fazer. A pretexto de cobrar imposto, não pode impedir novas formas de relação do trabalho. Dos sindicatos, compreende-se que vejam as PJ como ameaça: se não é um assalariado, o prestador de serviços não tem por que recolher o imposto sindical obrigatório. É como um jogo, em que cada lado defende o próprio interesse. O presidente é que não pode tomar partido, até porque não é mais um sindicalista.

Emprego e trabalho

O governo precisa entender o que são as PJ – as firmas de dois sócios, como diz pejorativamente a Receita. Só que a lei obriga a formação de sociedades com mínimo de dois sócios. O desempregado mais velho tem nelas o único jeito de arrumar trabalho. Não como assalariado sem registro e sim pela prestação de serviços de fato.

Médico com consultório e que atende também em hospital se enquadra melhor como PJ. É o caso do técnico e jogador de futebol atuando por temporada. Artistas de novelas, idem. Tais atividades estariam inviabilizadas se tratadas como emprego formal e sujeitas ao custo dos encargos sociais. Muitos não são empresários, embora a maioria o seja, mas não são assalariados disfarçados, de jeito nenhum.

O raciocínio obtuso tende a relacionar trabalho a emprego, o que nem sempre significam a mesma coisa. Emprego pressupõe uma relação estável, sim, mas não apenas: exige carga horária e exclusividade, a qual, mesmo não pedida, está implícita pela definição de hora de entrada e saída. Trabalho pode ser um projeto, assim como os que o próprio governo encomenda a consultores privados, muitas vezes, um professor de univerdisde federal. Como recebe essa gente? Por uma PJ. Como é paga boa parte do pessoal da produtora de tevê do filho do presidente? Como PJ. Trabalho artístico raramente é exclusivo e costuma ser vendido pelo profissional no mercado.

Ainda que os encargos sociais fossem baixos e os impostos, pro-forma, o prestador de serviço teria seu lugar no mercado. Muitos são o típico empreendedor, que assume riscos e cria novas empresas só com boas idéias. Outros são a vanguarda dos nvoos contratos de trabalho, como horário flexível e troca de benefícios, como férias, por mais liberdade. Agora, se tem empresa trocando a mão-de-obra formal por PJ, a Receita tem é de mandar bala e acionar as Justiça.

Antonio Machado é jornalista e colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas e do site Cidade Biz (www.cidadebiz.com.br).

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