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Desde que “democracia” se tornou uma palavra quase universal no discurso político, sua popularidade só é correspondida pela sua falta de significado. Ou melhor, pela imensidade de significados que lhe foi atribuída. Se um termo significa tudo ou qualquer coisa, não significa nem representa coisa alguma em particular, ou seja, ele é indefinido, amorfo. Na noite hegeliana, diz o cientista político Giovanni Sartori, todas as vacas parecem pretas e, no fim das contas, o próprio leiteiro é confundido com uma vaca. Se a democracia deixou seu âmbito e identidade básica familiar de uma forma de governo historicamente concreta, em que qualquer pessoa saberia distinguir um regime democrático de um autoritário, hoje não temos a mesma segurança, ou nem sequer uma base conceitual mínima traduzida em um vocabulário político comum, para fazer qualquer afirmação de natureza mais categórica.

Sartori ainda avisa que ideias equivocadas sobre a democracia podem fazer com que ela não dê certo. E, como a democracia e a sua definição não são questões triviais, o Instituto Atuação busca promover seu debate com diversos artigos que serão publicados neste espaço, nos próximos dias.

Tradicionalmente, “democracia”, sem adjetivos, sempre se reportou à esfera política como seu lócus natural e próprio. A Antiguidade clássica, claro, sempre teve um conceito amplo de política; mesmo quando os teóricos liberais ergueram um cordão de direitos individuais para delimitar as esferas privada e política, a democracia permaneceu um conceito sobretudo político. Por outro lado, a literatura acadêmica contemporânea criou cerca de 550 tipos e subtipos de democracia, mais que o número de Estados independentes no mundo.

Ideias equivocadas sobre a democracia podem fazer com que ela não dê certo

Para ser justo, esse esforço acadêmico reflete a expansão da democracia de seu âmbito familiar na Europa e nos demais países de língua inglesa após a Segunda Guerra Mundial: a democracia se tornou um fenômeno global, contabilizando 125 “democracias eleitorais” no mundo em 2015. Mesmo admitindo que a democracia tenha sempre existido em muitos lugares, as ideias e práticas conscientes da democracia remontam aos regimes dos atenienses e dos romanos, ainda que excludentes. A questão é que a democracia teve, por muito tempo, uma narrativa e uma linguagem comum, mesmo que elas tivessem incoerências profundas.

O problema não está em termos uma grande variedade de subtipos que ajudem na diferenciação, mas em saber onde começa e onde termina a comparação. Comparar pressupõe semelhanças básicas; se comparo diferentes expressões de uma mesma classe de coisas, devo entender que há um limite além do qual um subtipo é algo diferente em si e merece ter um nome próprio. Em vez de “democracia de um partido só”, por exemplo, talvez caiba mais chamar o regime pelo seu nome: autoritário (de algum tipo).

Em tempos de confusão conceitual, típica de períodos de transição, somos chamados a revisar os fundamentos, a arrumar a casa. Isso não se traduz em saudosismo, mas na aceitação, de forma coerente e transparente, de uma realidade expandida, que não é uma história “do zero”. Esses e outros assuntos serão discutidos na primeira Semana da Democracia em Curitiba, promovida pelo Atuação e por seus parceiros. Aqueles que trabalham pela democracia são os responsáveis pela realização do seu pleno potencial, mas, como disse Larry Diamond, devemos antes seguir o antigo provérbio: “Médico, cura-te a ti mesmo!”

Fernando Archetti é pesquisador do Instituto Atuação, organização que realizará a Semana da Democracia, evento que ocorrerá em Curitiba em 23 de novembro.
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