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Um dos estereótipos de Hollywood relacionados ao Brasil imaginário foi desde sempre o clássico scape to Rio: em filmes de assaltos e golpes retumbantes, lá estava o invariável destino reservado a foragidos simpáticos e que mereciam final feliz. Não foi simples ao Supremo Tribunal Federal desconstruir o clichê de impunidade e de abandono das terras do Zé Carioca. Isso se deu com reiteradas concessões de extradição, mesmo contra a opinião pública, como no caso Biggs ("o ladrão é nosso"), ou contra patrulhas ideológicas poderosas, nos casos Fierminich e Garcia Mezza. O primeiro era montonero argentino de extensa folha corrida e o outro, generalíssimo de óculos escuros, ex-ditador da Bolívia, por igual pouco recomendável. Ainda são emblemáticas as extradições do mafioso Tommaso Buscetta e da estrelíssima mexicana Gloria Trevi, devolvidos sem interferência presidencial, até para deixarem de acreditar em cinema americano. Com isso, o STF elaborou, ao fio de décadas, apreciável arcabouço jurisprudencial, de qualidade e de atualidade inatacáveis.

No rescaldo do Caso Battisti, o Brasil volta à ribalta, na forma nebulosa como se tenta explicar a opção presidencial, tanto contra decisões da Justiça italiana, como da própria Justiça brasileira. Não há que se questionar, ainda que na Corte de Haia, o poder do presidente da República, em nosso modelo político, para dar a última palavra nas extradições. O que fica a pairar em vácuo de razão elementar é o embasamento que se pretendeu dar ao último ato internacional de Lula. Instituto jurídico destinado a prevenir impunidade, a extradição não é julgamento em si. Trata-se apenas de ato de cooperação entre nações civilizadas, para devolver-se eventual criminoso a seu domicilio, com o objetivo de clarificarem-se fatos ou de efetivar-se a aplicação da pena. No imbróglio Battisti, no entanto, o contraste entre a decisão de Lula e os precedentes julgamentos demonstra fato inelutável: o Poder Executivo brasileiro também se arvorou no direito de julgar. E não apenas a Justiça italiana, mas seu próprio Supremo Tribunal Federal, todos considerados, em alguma medida, facciosos perante a verdade presidencial.

De fato, quem não viveu o autunno caldo, ou os anni di piombo, não pode avaliar como a democracia italiana foi exuberante ao enfrentar o terrorismo brutal das brigadas vermelhas, sem leis excepcionais ou guantanamos de ocasião. De resto, como também fez a Alemanha, em relação ao famigerado grupo Baader Meinhof. Talvez isso garanta indenidade ao pedido italiano de ter de volta seu ex-terrorista, na convicção de que não deve haver ex-assassinos.

Como consequências nas relações bilaterias, nada de importante haverá de ocorrer, além do turismo de foragidos a redescobrir o Brasil. Principalmente se Berlusconi continuar a governar com seu pragmatismo eleático e que já desqualificou o caso: "pelo menos o Estado italiano está economizando alojamento e alimentação". Afinal, a maior fábrica Fiat está no Brasil e os acordos militares e comerciais em jogo interessam mais a quem quer vender, no caso a Itália. Quanto ao recurso à Corte de Haia, como se tem aventado, a hipótese é tão remota e improvável quanto à credibilidade do primeiro ministro residente do Palácio Chiggi.

É certo que a índole democrática que Lula exercitou com tanta qualidade em seus mandatos não tomou em conta a gravidade do caso Battisti, o seu significado para a Europa e para a Itália. Na União Europeia, a autonomia penal dos países membros é religião em que não há ateus. Na Itália, não há vozes isentas no parlamento, na academia ou nos sindicatos, que compreendam a decisão do ex-presidente brasileiro, em contraste com sua imagem democrática e republicana. Mal informado e vítima de suas boas intenções, talvez Lula não tenha nem sequer dimensionado o milagre que conseguiu realizar. De forma inédita, como exalta o Corrieri della Sera, em gigantesca manchete, a esquerda e a direita italianas finalmente estão juntas, do juiz das mãos limpas Di Pietro aos detestados separatistas da Liga Norte. Desde Garibaldi, muitos tentaram, Lula conseguiu.

Jorge Fontoura, doutor em Direito pela Universidade de Parma, Itália, é professor titular do Instituto Rio Branco e árbitro presidente do Tribunal Permanente do Mercosul

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