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Os abalos sísmicos da economia mundial revelam que a primeira década do século 21, ao contrário do que fora sonhado e brindado no Revellion da virada do milênio, vai encerrar em tom de funeral. Como todo baile movido por excessos, a ressaca do day after parece inevitável. As bases da economia mundial e, portanto, das diferentes economias nacionais estão se movimentando. Sem capacidade de previsão, os governos sentem o chão se movimentar em diferentes direções e aos poucos se afirma o consenso de que o período de bonança e farra acabou.

A bonança, no caso, decorre dos efeitos reais e benéficos do largo crescimento econômico generalizado pelos continentes. A farra, por seu turno, se caracteriza pelo comportamento embriagado dos mercados financeiros desregulados. A insensatez dos próprios agentes financeiros, auxiliada pela postura indiferente dos bancos centrais, permitiu a criação de um mundo virtual de operações derivativas das mais diversas, com contratos revendidos várias vezes, em mercados secundários. O mercado subprime americano foi apenas a primeira gota de água que transbordou do copo. Os respingos caem em todas as praças financeiras.

De acordo com o credo liberal, a desregulação financeira combinada com mobilidade de capitais levaria à um crescimento financeiramente sustentado e, conseqüentemente, ao aumento do bem-estar e da eqüidade mundo afora. Os agentes financeiros e produtivos, ao confrontar interesses individuais no mercado, seriam conduzidos pela mão invisível a eliminar excessos. As empresas e os consumidores não se endividariam além do bom senso e os bancos não se exporiam a riscos crescentes. A inteligência humana, posta a serviço de interesses individuais, garantiria o equilíbrio econômico.

Foi esse entendimento ideológico que levou bancos centrais no mundo todo a lavar as mãos como Pilatos, o romano. Os agentes não precisam de intervenção e regulação, pois sabem o que fazem. Os acordos de Basiléia I e II, que são uma tentativa de monitorar e regular o sistema financeiro, foram postos de lado ou ignorados. Por ironia do destino e fazendo jus à política externa romana de não interferir em assuntos religiosos locais, os encontros acontecem na cidade suíça de Basel, fundada pelos romanos sob o nome de Basilia. Um local apropriado para se lavar as mãos! Neste chão romano cravado no interior da Suécia funciona hoje o Banco de Compensações Internacionais, onde os bancos centrais e agências liquidam suas operações internacionais e buscam garantias de estabilidade monetária. Em essência, os acordos de Basiléia definem critérios de mensuração de riscos e determinam exigibilidades contracíclicas para evitar que bancos e instituições financeiras operem excessivamente alavancados e exponham-se a riscos crescentes, inclusive riscos de crédito. Como isso reduz a liberdade de agir em mercados supostamente eficientes, as recomendações não foram colocadas em prática.

Mas eis que a parábola smithiana da mão invisível levou a economia a outros caminhos. O setor financeiro criou um mercado de derivativos à parte. Nele se compram e vendem contratos futuros, cujo fundamento ou lastro são títulos públicos, privados, mercadorias, taxas de juros, índices, carteiras de recebíveis (o caso do subprime) e o que mais que possa ser vendido neste mundo. Compra-se e vende-se não "coisas" , mas variações. Compra-se e vende-se numa ciranda sem fim. O mercado futuro teoricamente, como ensinam muitos textos de economia, serviria para ajustar as expectativas dos agentes e permitir um equilíbrio maximizador intertemporal dos agentes e permitir hedges ( eliminação de risco ) . Não é o que se vê. Na prática, se transformaram num dragão lançador de chamas. Especulam sobre si mesmos inflando preços reais.

A moeda dos países, os preços do petróleo e outras commodities sobem excessivamente porque há agentes que compram o barril no mercado futuro a US$ 100 acreditando que ele irá subir a US$ 110. Quem comprou a US$ 110 vende a US$ 120, porque ainda tem alguém acreditando que possa revendê-lo a US$ 130 e assim sucessivamente, até que surjam bolhas. E bolhas são assim: todo mundo sabe que vão estourar um dia. O problema é que ninguém acredita que isso acontecerá amanhã, então, por que não arriscar para ganhar mais um naco de dinheiro em mais um dia de operação?

A atual crise financeira mundial é o resultado, "imprevisto" , da parábola smithiniana e da onda de liberalização financeira dos últimos 30 anos. O mercado falhou e mais uma vez a desordem imperou, apesar de todo avanço da teoria macroeconômica e dos aperfeiçoamentos dos Bancos Centrais. O alheamento dos bancos centrais, mesmo sabedores de todo o risco, não pode ser explicado por razões técnicas e ou modelos econométricos. É um caso para a economia política. É preciso, urgentemente, intensificar a profilaxia. Mais que lavar as mãos, é preciso não ter que sujá-las. Os bancos centrais terão de intensificar e implementar os instrumentos de regulação da Basiléia. Inclusive o nosso, ultraliberal e indiferente a uma expansão excessiva de crédito num ambiente dominado pela taxa de juros mais alta do mundo.

João Basílio Pereima Neto é professor de macroeconomia da UFPR.

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