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Para Dev Kar, economista, de 1960 a 2012 o Brasil perdeu mais de 590 bilhões de dólares em fugas de capitais. A maior parte (quase 400 bilhões) teria origem criminosa. O restante, todavia, tem origem lícita e escapou do país diante da instabilidade econômico-financeira do período que fez muitos cidadãos, por proteção, enviaram ao exterior, à socapa, valores ganhos legalmente. Em busca desses recursos, a Câmara dos Deputados aprovou há pouco o texto-base do Projeto de Lei do Senado n. 298/2015 que permite a repatriação de valores de origem lícita mantidos no exterior e não declarados à Receita nacional, mediante o pagamento do imposto devido e multa, anistiando-se, ainda, os crimes de evasão de divisas e sonegação fiscal vinculados à fuga desses capitais. Essa espécie de “justiça de transição”, segundo Heleno Torres, já foi adotada por diversos países (Alemanha, México e Itália, por exemplo) e ajuda a reforçar o caixa de muitas economias em tempos de crise. Não é à toa que o governo atual defende o projeto.

Mas a proposta não está imune a críticas. Além da questão moral envolvida (o projeto beneficia quem fraudou o Fisco durante anos em detrimento de cidadãos de maior resiliência ética que pagaram seus impostos em dia) há um problema ainda mais grave, de ordem criminal: não é propriamente fácil separar o dinheiro lícito (marcado apenas pela fuga de capitais ou sonegação fiscal) daquele ilícito, originado de outros crimes. Como dizem os tributaristas, para a Receita o dinheiro sujo não tem cheiro. Origem lícita ou ilícita, há poucas diferenças naquilo que se arrecada.

O problema existe no que toca ao dinheiro de origem ilícita, que pode ser proveniente de graves crimes

A anistia de crimes tributários e de evasão de divisas calha a um Direito Penal constitucional (portanto, mínimo). Nos dois casos, o dano ao bem jurídico é plenamente reparável pelo pagamento do imposto devido, acessórios e multa – tratamento que, aliás, já é regra nos crimes tributários e pode ser estendido ao crime de evasão de divisas, de mesma natureza. Afinal, cria-se um sistema de soma zero quanto à lesividade da conduta, pois os valores são obviamente mais úteis à ordem tributária se repatriados agora, em tempos de crise, do que permanecendo no exterior. A reentrada dos ativos, conjugada ao pagamento das dívidas tributárias pertinentes, recompõe financeiramente a paz social violada pela evasão. A isso, um Direito Penal de ultima ratio não pode se opor, pois diante do crescimento galopante da repressão penal como forma de solução de problemas sociais, medidas descriminalizadoras e despenalizantes são sempre bem vindas.

O problema existe, todavia, no que toca ao dinheiro de origem ilícita, que pode ser proveniente de graves crimes (tais como corrupção e tráfico de pessoas). Aqui, porque os interesses atingidos transbordam a esfera tributária, a permissão da repatriação desses ativos cria um evidente conflito entre as políticas tributária e criminal, pois a necessidade de fazer caixa não pode justificar exceções às demandas punitivas democráticas e reconhecidas tanto constitucionalmente quanto em tratados internacionais.

Daí que a redação de um projeto de lei dessa magnitude precisa ser realizada com extrema cautela. Não se pode impedir a investigação e verificação (guardadas as garantias do acusado) da origem dos recursos a serem repatriados, bem como a anistia não pode ultrapassar os crimes de evasão de divisas e sonegação fiscal. Do contrário, estará institucionalizada a lavagem de dinheiro e o projeto de lei prestará um desserviço ao Estado de Direito ao constituir um salvo conduto a crimes que são graves pela dimensão que tomam, pelos danos que causam e pelo constrangimento que produzem no bom cidadão.

Rui Carlo Dissenha, Advogado criminalista e professor de Direito Penal da Universidade Positivo
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