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Direito de precedência na prática: uma questão de cidadania e amor
| Foto: Lineu Filho/Tribuna do Paraná

Os cartazes nos ônibus, agências de correios, hospitais, bancos, etc., que pedem para se dar preferência aos idosos, grávidas e deficientes são simplesmente um convite à prática da cidadania, mas que muitas vezes encontram resposta que se contrapõe ao bom senso e à boa educação, uma vez que a sociedade, na ânsia de ganhar a maior vantagem e “se proteger” do coronavírus, está deixando de lado alguns dos seus valores fundamentais.

Grande parte das pessoas está paralisada por um sentimento de Schadenfreude, a palavra germânica que tem sido adotada pelo inglês e outras línguas porque não existe outro termo para descrever o que ela denota: o gosto malicioso de ver os infortúnios dos outros. Esta palavra apareceu em inglês pela primeira vez em 1852, no livro Study of words, do filólogo Richard Chenevix Trench. A Schadenfreude reflete uma moral interior degradada, gerando um prazer quando a pessoa vê ou percebe as calamidades dos outros.

Há muitas pessoas que não conseguem ver o outro bem ou fazendo algo diferente; sentem inveja e procuram a competição em vez da colaboração. Elas não conseguem respeitar as regras, pensando mais na distração que na evolução, mais em vantagem temporária que no amor pelos outros. Não é de estranhar que os países mais egocêntricos são os que têm mais casos de mortes por coronavírus.

O artigo “The impact of national culture on knowledge management and governmental intelligence”, de Cristiano Trindade de Angelis, explica bem como a cultura nacional impacta a gestão do conhecimento e a inteligência governamental e vice-versa. Percebe-se que o sentimento de liberdade pode ser confundido com o excesso de poder (Estados Unidos), com a convicção de ser melhor que os demais, e por isso deixar a União Europeia (Reino Unido), de ser a nação mais bela do mundo (Itália), de ter a língua mais elitizada (França), de ser a nação mais divertida (Espanha), de ser o país que tem mais recursos naturais (Brasil). É nesses países que boa parte das pessoas tem dificuldade de obedecer a quarentena – mesmo que esta não tenha base científica – ou até mesmo de seguir a regra básica do uso da máscara, que é simplesmente uma questão de cidadania. Esses são os seis países com o maior número de mortes pela Covid-19 atualmente. Enquanto isso, a China, acusada pelo governo americano de Donald Trump de ter demorado a reagir, prometeu em 18 de maio, por meio do seu presidente, Xi Jinping, compartilhar uma eventual vacina e alocar US$ 2 bilhões para a luta global contra o vírus.

Já no Brasil, o Ministério da Saúde incluiu, no dia 20 de maio, a cloroquina e seu derivado hidroxicloroquina no protocolo de tratamento para pacientes com sintomas leves de Covid-19. Apesar de ser decisão do médico prescrever ou não a substância, a insistência no uso de um remédio com efetividade não comprovada foi o motivo do pedido de demissão do ministro da Saúde Nelson Teich, dando lugar a mais um general no governo.

Colocar o debate econômico em contraposição à questão da saúde é uma falsidade. Aqueles que dizem que precisam movimentar a economia não costumam pegar o transporte público, onde encontramos maior aglomeração e facilidade de transmitir o vírus. E aqueles que falam apenas na saúde não veem que as pessoas não têm proteção no emprego e precisam de dinheiro para sustentar e proteger suas famílias. Há, portanto, um confronto de suposições entre aqueles que acham que a crise econômica nos trará maiores malefícios, podendo causar inúmeras mortes (indiretas), e os que vivem mais o presente, priorizando ao máximo a vida das pessoas nesse atual momento.

O uso de luvas e de máscaras podem aumentar sensivelmente a segurança para que se volte ao trabalho, mas antes devemos refletir sobre o uso correto desses mecanismos de proteção por todos e sobre direitos humanos básicos. Tanto a sociedade quanto os setores público e privado precisam ter em mente que há pessoas que são tão frágeis que nem sequer podem lutar por seus direitos.

E isso nos traz de volta aos avisos de atendimento preferencial. Apesar de haver regulamentação no Brasil que diga que as pessoas mais frágeis podem ser aceitas com preferência em órgãos públicos e privados, na prática isso não ocorre como deveria. É notável que algumas pessoas ainda não tenham pleno conhecimento de que deficientes físicos e idosos (com idade acima de 60 anos), mulheres grávidas ou com criança de colo (até 2 anos) têm prioridade nas filas de bancos, supermercados e serviços públicos, em assentos no transporte público e a vagas de estacionamento para carros, a partir do que rege o artigo 30 do Estatuto do Idoso e o artigo 76 do Código de Defesa do Consumidor. Os estabelecimentos que não cumprem essas determinações podem ser denunciados – seja ao poder público, via Procon, ou para o conhecimento de outras pessoas, em sites como o “Reclame Aqui”. Também as pessoas que não respeitam os direitos dos mais frágeis devem ser alvo de denúncia. Isso é tão importante quanto o combate a corrupção, a “maior doença do Brasil”, visto ser um direito humano fundamental a proteção da honra e da dignidade.

Há de se aproveitar a pandemia para encontrar um equilíbrio favorecendo sempre os mais necessitados, no mais estrito “princípio da equidade”. De acordo com Maria Fernanda Dias Mergulhão, doutora em Direito, historicamente colhe-se do Direito Romano a Codificação Justiniana como um grande marco na aplicação da equidade, eis que conferia poderes ao juiz para decidir por equidade e exigências do bem comum em preferência ao jus strictum, ao velho silogismo. Locke, à frente de seu tempo, já registrava que “embora o Estado de Natureza tenha tal direito (de a ninguém se sujeitar), a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros porque, sendo todos reis tanto quanto ele, todo homem igual a ele, e na maior parte poucos observadores da equidade e da justiça, a fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura, muito arriscada”. No direito medieval, São Tomás de Aquino desenvolveu o conceito de equidade proposto por Aristóteles sob o viés cristão de amar ao próximo como a nós mesmos.

Como estamos ainda em processo de tentativa de evolução, nesses momentos de pandemia, o governo deve atuar por meio de campanhas e intervir ativamente com benefícios a favor das categorias mais frágeis, a fim de equilibrar as desigualdades existentes e, assim, proporcionar o crescimento cultural, social e até mesmo econômico.

Um discurso controverso que viralizou em grande parte dos meios de comunicação pede que cada um “cuide de si mesmo que estará cuidando do outro”. Na realidade, há apenas um dever moral genuíno de algumas pessoas para ajudar aqueles que mais precisam, tentando favorecer o bom convívio. É um grande desafio a ser resolvido pela sociedade, pois, quando os cidadãos são confrontados com uma necessidade, procuram, acima de tudo, o seu próprio interesse. Neste sentido, fazer cumprir as determinações governamentais é absolutamente bem-vindo para trazer um pouco de civismo, que sempre diminui quando a dificuldade aumenta, quando deveríamos ver exatamente o oposto.

No contexto atual da disseminação do coronavírus, a necessidade de promover a questão da precedência pela aplicação dos costumes ante a lei é mais forte. No entanto, a lei não é o mais importante para mudar a atitude, e sim a reflexão de que vivemos em comunidade e que, quanto melhor as pessoas ao meu redor estiverem, melhor – e, consequentemente, mais saudável – estarei eu dentro desse ambiente colaborativo. O uso da máscara prova isso porque quando uso a máscara eu protejo o outro; quando o outro usa a máscara ele me protege, independentemente da existência de uma norma que obrigue a isso.

A quarentena não pode ser vista com uma prisão, mas, pelo contrário, como uma possibilidade da liberdade maior de acesso a hábitos previamente não construídos devido à falta de tempo, como a leitura em casa e maior companheirismo, respeito e admiração pela família e amigos, práticas de atos solidários. Talvez até mesmo o desenvolvimento de um trabalho social no bairro onde cada um reside. Assim, as pessoas durante a quarentena podem trazer resultados opostos à prisão domiciliar: mais liberdade para descobrir quem são e o que é realmente importante em nossas vidas: o amor entre as pessoas.

A abordagem de desenvolvimento, como a liberdade proposta pelo prêmio Nobel Amartya Sen, pode articular coerentemente as questões dos direitos humanos, educação e cidadania. Segundo Sen, a educação é uma liberdade instrumental para o desenvolvimento. Tão importante é a educação que ela é um fim em si mesma, dada a inseparabilidade prática entre ser bem educado e o ser livre. No entanto, não devemos considerar o desenvolvimento da cidadania como um processo historicamente linearizado, cumulativo ou exclusivamente escolar. Isto porque a formação da cidadania é atravessada por litígios materiais e intangíveis em curso e retornos historicamente colocados e em sentidos individuais e coletivos. Por conseguinte, o desenvolvimento da cidadania é uma questão de prática e de teoria; arte, bem como ciência. Acima de tudo, é um longo processo histórico de educação e amor ao próximo.

Visto que a cidadania é a prática dos direitos e deveres dos indivíduos dentro de sua comunidade, ela só se torna possível quando executada pelos mesmos. Assim como o corpo humano não engloba somente a parte física, mas espírito, alma e corpo, também as cidades não são apenas as construções (prédios, casas, praças), mas a coletividade, a cultura e as construções empreendidas ao longo da história. O desenvolvimento da cidadania é defendido como um processo de maturação democrática popular que anda de mãos dadas com as qualificações individuais e coletivas e com a consolidação de mecanismos de governação institucional efetivas; por isso, é importante um “impulso inicial” do governo.

Como vamos tornar mais efetiva a prática da cidadania no Brasil, visto que essa cultura se encontra enraizada principalmente no egocentrismo? Há de que se esperar pelas boas intenções dos nossos legisladores? Devemos esperar a vontade do nosso Executivo? Sim e não: muitos aspectos dependem da vontade dos mais “poderosos”, mas devemos nos lembrar que vivemos em uma democracia, em que cada indivíduo deve cumprir seu papel.

Mais investimento em pesquisa e educação, campanhas na área da ética, moralidade e cidadania, com o intercâmbio de conhecimentos e soluções com a sociedade e outros países, têm o potencial de mudar crenças, valores, pressupostos e melhorar a cidadania, ao contrário da simples globalização econômico-financeira-cultural, com multinacionais, internet, redes sociais e grandes eventos, responsável pela avalanche de informação e baixa sabedoria e amor.

Cristiano Trindade de Angelis é analista do Ministério da Economia. André William Feix é advogado.

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