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Declaração dos direitos do homem, por Jean-Jacques-François Le Barbier (1738 -1826).
Declaração dos direitos do homem, por Jean-Jacques-François Le Barbier (1738 -1826).| Foto: Wikimedia Commons

O que os direitos humanos tornaram-se hoje? Se, antes, havia uma espécie de senso comum acerca de sua importância e valor para qualquer sociedade civilizada, hoje, esse sentido arrefeceu-se bastante. Basta acessar qualquer jornal e constatar que se pleiteia a extensão desses direitos para outras pretensões que, por ocasião da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH – 1948), soariam, no mínimo, inconsistentes.

Minha mãe até fez uma lista, já que a indagação partiu dela: contracepção, suicídio, aborto, divórcio, pornografia, eutanásia, homossexualidade, eugenia, esterilização, redesignação sexual e poliamor. Quando recebi o papel – um guardanapo manuscrito numa tarde de café a dois –, disse-lhe que poderia acrescentar a pedofilia, a próxima pretensão desse desfile de práticas que só demonstram que não o rei, mas o homem, está nu e muito à vontade nesse ambiente nada humanizante.

Certamente, a cultura ocidental venceu o coletivismo das antigas repúblicas soviéticas, mas, uma vez quebrado o equilíbrio da Guerra Fria, os direitos humanos, positivados em prol da pessoa humana contra os excessos comunitários e governamentais, não foram capazes de nos preservar dos excessos inversos do individualismo, uma espécie de ovo da serpente involuntariamente chocado pela DUDH.

Não estamos mais no mundo pós-guerra. Tivemos 1968, 1989, 2001, 2007 e 2015. Entender a transformação dos direitos humanos é entender a transformação do homem por setenta anos e delinear seu futuro próximo. Por isso, é necessário olhar mais fundo. Parece, então, que, apesar das aparências, não houve ruptura na lógica fundamental dos direitos humanos desde 1789.

Ela continua sendo impulsionada pela afirmação do primado de cada pessoa e de sua tutela contra todo excesso da comunidade e do governo. Certamente, seria ingênuo acreditar, em 1948, que o impulso despertado por essa afirmação liberal poderia estar contido numa futura redefinição do ser humano algumas décadas depois.

Esse impulso não parou lá. Ele demoliu a sadia antropologia filosófica de matriz personalista que fundamentava a DUDH e se espalhou ao longo desses setenta anos, estendendo o escopo da vida privada ainda mais e reduzindo correspondentemente o da moralidade pública e o do bem comum.

Nesse período, a sociedade ocidental não se considerou mais legitimada para propor uma concepção prescritiva de ser humano, porque, ao que parece, de umas décadas para cá, não sabemos mais o que é o homem, fato constatado por insuspeitos pensadores como Heidegger, para quem “é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa o que é o homem”.

Segundo a tradição antropológico-filosófica que sempre nos identificou como civilização ocidental, Deus, ao se revelar aos homens, revelou o mesmo homem para si mesmo. Agora, sem essa revelação do homem por Deus, somos condenados a nos conhecer apenas pelos labirintos de nossa subjetividade, sem o espelho da alteridade divina.

Assim, a causa da transformação dos direitos humanos, que observamos hoje, deve ser buscada menos nos mesmos direitos humanos em si e mais na rejeição ao dado transcendente. Essa visão antropológica prometeica, manietada e insuficiente, tira do homem sua identidade e dignidade de criatura imago dei para lhe dar, em troca dessa filiação divina, o prato de lentilhas da liberdade na orfandade do nada.

Neste contexto, há um duplo andamento de afirmação de “novos direitos humanos” e de destruição daquela tradição, mas que, na prática, são apenas um único movimento, já que os novos direitos visam apenas à aquisição do empoderamento necessário para se livrar dessa tradição que, segundo a visão antropológica prometeica, limita o poder do indivíduo sobre si mesmo em nome de um superado respeito pela harmonia cosmológica.

Assim, o poder do indivíduo sobre si mesmo deve ser liberado, a fim de se quebrar essa harmonia, ao mesmo tempo em que vai introduzindo, destiladamente, um conflito no ser. Os “novos direitos humanos” – aqueles da lista no guardanapo – são a suma expressão desse conflito.

São os direitos da vontade de poder sobre o corpo humano e, por isso, resgatam e reforçam as concepções dualista e materialista do homem, ao mesmo tempo em que destroem o antigo princípio da indisponibilidade do corpo humano, tomado para assegurar a dignidade do homem, entendido como uma unidade de corpo-espírito.

Já faz algum tempo em que, no Ocidente, a fonte da dignidade humana mudou. Não reside mais na unidade harmoniosa entre corpo e espírito, mas no domínio exclusivo de um espírito individual cuja liberdade professa um individualismo sem limites.

Na ótica dessa nova fonte, todo ato realizado em si mesmo é bom, porque foi querido livremente. A redução do indivíduo à mera vontade não é, de seu ponto de vista, uma privação, mas uma libertação de tudo o que não é ele, daquilo que o preexiste e é um obstáculo para sua plena realização ilimitada. Uma pronta e acabada egofania, no dizer de Voegelin.

Ao deixar de lado as condições que o socializam, como o corpo, a família, a sociedade e a religião, o espírito, segundo essa antropologia prometeica, manifestaria sua transcendência, ou seja, sua capacidade de se elevar e dominar tudo, como se emancipasse da matéria da qual emergiria. Metaforicamente, o espírito dessa mundividência antropológica anseia por seu corpo não mais do que a borboleta pelo da lagarta.

Essa amputação antropológica, na prática, só faz maltratar o corpo e o individualismo que a sustenta reduz a realidade tangível ao nível de aparência insignificante e, ao fazê-lo, reconhece o poder de cada indivíduo de ressignificar o que é e da maneira como bem quiser.

A redução da pessoa à vontade consistiria numa sublimada libertação do espírito do corpo individual. O indivíduo seria a verdade de si mesmo. Nesse ponto, assumiu-se a tarefa de tornar eficaz a primazia prometeica do indivíduo, oferecendo à vontade a capacidade de transcender todas as suas condições.

Então, para se concretizar isso, entram em cena os direitos humanos. Eles devem destruir a dimensão normativa de tudo o que ainda envolve o indivíduo – o corpo, a família, a sociedade e a religião – e fazer renascer o indivíduo como uma espécie de pérola retirada de um lamaçal.

Dessa maneira, as medidas tomadas contra a família, o casamento, o sexo biológico, as igrejas ou as tradições são consideradas libertações existenciais por uma minoria que se considera progressista. Aliás, a magia do progressismo está em saber como começa e nunca como termina.

Nesta nova perspectiva, os direitos humanos não servem mais apenas para proteger indivíduo dos excessos comunitários ou governamentais, com base em sua dignidade humana, que foi o sentir dos signatários da DUDH, mas, também, para “libertar” o homem de sua “natureza e estruturas supraindividuais opressoras”, a fim de lhe garantir a primazia e a transcendência do espírito.

Enquanto a lógica da proteção da natureza humana é defensiva e estática, a da libertação é, pelo contrário, conquistadora e dinâmica, porque “a liberação e a elevação espirituais” da antropologia prometeica aqui desvelada constituem ideais ilimitados.

O indivíduo, oculto na pessoa, permanece, como espírito de seu corpo material, o verdadeiro sujeito dos direitos humanos. Ele deve emergir de sua “sufocante existência” e se emancipar de todas as velhas e carcomidas ordenações naturais que o socializam: o corpo, a família, a sociedade e a religião.

Assim, de maneira progressiva, desde o advento da DUDH, o verniz personalista da antropologia filosófica, que cobria a gênese dos direitos humanos, vai se consumindo num franco processo de opacidade provocado pela virilização da seiva do individualismo que a contaminou desde dentro.

Eis o admirável novo homem: o indivíduo é humano por sua mera vontade e, portanto, quanto mais ele domina e se liberta de seu corpo, pela via da emancipação dos direitos humanos, mais ele se eleva em humanidade. Corrijo: em desumanidade e, como efeito, em direitos humanos desumanizados.

André Gonçalves Fernandes, Post-Ph.D., é juiz de direito, professor-coordenador de metodologia do direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp, professor-visitante da Universidade de Navarra e membro da Academia Campinense de Letras.

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