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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

“Disforia de gênio”: para quando um tratado médico sobre o assunto? Atenção às palavras: não falo de “disforia de gênero”, distúrbio que acontece quando alguém nasce com um determinado sexo (biologicamente falando) e se identifica com o sexo oposto.

A “disforia de gênio” é outra coisa: um estado de dissonância, sim, mas entre cérebros – o real e o imaginário. A pessoa nasce com capacidades nulas para, sei lá, cantar ou dançar – mas acredita ser um gênio em qualquer dessas artes.

Honestamente, não sei quantos exemplares conheci nesta vida com tal problema. Na adolescência, era um todos os dias, normalmente com uma queda patológica para a poesia.

Depois, quando a idade adulta batia à porta, a “disforia de gênio” tendia a desaparecer com as contas para pagar. Mas muitos continuavam a sofrer do distúrbio pela vida fora. Alguns fizeram carreira.

Mas como reconhecer alguém que sofre de “disforia de gênio”?

O disfórico, contrariamente às pessoas com genuíno talento, nunca tem inseguranças

A primeira característica, creio eu, é uma confiança ilimitada nas suas capacidades para uma determinada arte ou profissão. Poesia, música, teatro – o disfórico nunca duvida dos resultados da sua arte, mesmo que os outros se horrorizem perante os resultados.

O disfórico, contrariamente às pessoas com genuíno talento, nunca tem inseguranças, frustrações – nunca sofre daquela “síndrome do impostor”, em que o indivíduo tem a sensação de que pode ser descoberto por terceiros como o impostor que (não) é.

Para o disfórico, impostores são os outros. O que nos leva à segunda característica: a incompreensão. Não é ele que sofre de ausência de talento; é a humanidade em geral que não tem o talento necessário para reconhecer o talento que ele possui.

Críticas negativas, em geral, têm o efeito inverso do pretendido: reforçam a crença na conspiração – e na singularidade do sujeito criativo.

Em terceiro lugar, quem sofre de “disforia de gênio” tende a combinar uma mistura de preguiça e presunção que se traduz no horror por qualquer forma de formação ou educação.

O escritor genial não lê. O pintor genial não frequenta museus. O filósofo genial não estuda outros filósofos. E etc. etc. O talento é “natural” – ou não é. E, se é “natural”, é preciso “pensar fora da caixa” (o mantra preferido da tribo).

Do mesmo autor: Profetas da desgraça (publicado em 12 de maio de 2018)

Leia também: A falta de letramento científico e ético enfraquece nossa sociedade? (artigo de Willyans Maciel, publicado em 20 de maio de 2018)

Existe, assim, um cisma inultrapassável entre “trabalho” e “criação”: onde há “criação”, não pode haver “trabalho”. A expressão “trabalho criativo” é um oxímoro para quem sofre de “disforia de gênio”.

Conheci vários desses pacientes, repito. Mas se o leitor não teve essa sorte, por que não assistir a “Artista do Desastre”, o longa de James Franco que me escapou na altura devida?

Com talento (genuíno), Franco revela-nos Tommy Wiseau, o lendário autor do pior filme jamais feito. Uma distinção que transformou Tommy (e o filme, The Room) em objeto de culto.

Franco relata-nos a criação desse fenômeno. E então encontramos Tommy, viajando para Los Angeles na companhia de um amigo igualmente ambicioso, em busca da fama merecida.

A fama não vem porque o talento não existe. Mas Tommy, como um bom disfórico, não aceita o diagnóstico de terceiros. Com uma fé inabalável na sua genialidade, escreve um roteiro; contrata uma equipa de produção; compra o material necessário para filmar a sua obra-prima; e assume o lugar de ator principal.

Existe, assim, um cisma inultrapassável entre “trabalho” e “criação”: onde há “criação”, não pode haver “trabalho”

O que vemos a seguir depende da perspectiva. Para nós, meros mortais, Tommy Wiseau é incapaz de dirigir ou representar, embora o verbo certo seja “funcionar”. No caso, “funcionar” no mundo real, fora do manicômio.

Não para Tommy, que nunca duvida dos seus propósitos. E se a sua equipe, entre o pasmo e desespero, grita e desmaia com os seus modos tirânicos, Tommy encara esses comportamentos como confirmação da sua originalidade.

No final, quando o filme estreia e a sala ri com o resultado que passa na tela, Tommy Wiseau tem um momento de frustração e dúvida. “Serei uma anedota?”, pergunta ele ao amigo.

É um momento de fraqueza que dura pouco. Se os outros riem, isso é prova do seu gênio insondável: o alquimista conseguiu transformar um drama em comédia. Tudo está bem quando acaba bem?

Precisamente. Essa, aliás, é a característica final do disfórico de gênio: aconteça o que acontecer, tudo acaba bem para quem nunca fez nada mal.

João Pereira Coutinho é doutor em Ciência Política pela Universidade Católica Portuguesa.
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