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Duas margens do mesmo rio
| Foto: Thapcom

Daniel participava de dois grupos distintos de aplicativos de mensagens: um composto de profissionais da área de controle, tais como auditores e procuradores; e outro, de gestores públicos, especializados em licitações e contratos e outros assuntos da gestão. Era uma forma moderna e ágil de Daniel, também gestor público, se manter informado das novidades e mudanças da administração pública, em tempos de mudanças constantes e de existência que só faz sentido se você estiver nas redes sociais.

Chamou a atenção de Daniel que, por ocasião da crise sanitária da Covid-19, houve a publicação de novos normativos de simplificação da “burocracia” governamental, como a excepcionalização do pagamento antecipado e a previsão de compras por dispensa de licitação. Nos chats Daniel percebeu reações diversas, e díspares. Enquanto os gestores comemoravam as mudanças que viabilizariam o apoio logístico necessário em tempos de quase guerra, os auditores revelavam medo de ser uma porta escancarada para a corrupção desenfreada.

Os grupos de mensagens, a cova dos leões na qual Daniel resolveu habitar, são espaços de discussão por afinidade; nesse caso fictício, revelam a polarização atual na discussão, ampla ou segmentada, das questões afetas à gestão pública, que oscila entre a busca do resultado sem amarras para se atingir os objetivos e o controle burocrático amedrontador para banir a corrupção, o que dificulta uma discussão racional e ponderada de posições e iniciativas. Demonização de gestores ante controladores heróis. Ou gestores vitimizados diante de controladores opressores. Polarizações de nosso tempo, frutos da nossa falta de confiança generalizada.

E essa polarização dificulta a discussão de situações concretas, como a aquisição de insumos diante da emergência sanitária da Covid-19. Um cenário confuso, de muita pressão da opinião pública, de escassez nos mercados local e internacional de equipamentos de proteção individual (como máscaras) e de equipamentos hospitalares (como respiradores), afetando as referências de preços, com fornecedores cobrando preços extraordinários, exigindo pagamento antecipado, prazos maiores para entrega dos produtos e oferecendo garantias precárias, o que afeta o mapa de riscos das contratações, seja pela possibilidade de corrupção, mas também pela impossibilidade da entrega, o que afeta as medidas contingenciais necessárias.

Desse cenário, surgem mudanças que afetam as salvaguardas, como as mitigações das vedações de pagamento antecipado e do dever de licitar, para viabilizar as ações necessárias, e que devem ser acompanhadas de mecanismos preventivos, como mais transparência, auditorias prévias específicas, em um conjunto de ações que busque se adequar ao novo cenário, garantindo de forma razoável o atingimento dos objetivos.

Mas a polarização no trato dessa questão pode gerar dificuldades na avaliação das compras efetuadas e na responsabilização contra eventuais malfeitos, além de escancarar a porta para oportunistas. De um lado se vê qualquer flexibilização como um incentivo ao desvio; de outra, comemora-se o fim de um mecanismo de controle, sem se propor nada que o substitua, em uma falta de uma visão ponderada e estrutural dessas questões.

A crise sanitária nos impõe desafios logísticos, de tempos exíguos e mercados em transformação, e cabe olhar esse cenário e identificar que mudanças serão necessárias nas salvaguardas para se obter sucesso sem tornar os riscos proibitivos. O risco de corrupção já existia antes, fazendo-se licitação e pagando-se posteriormente. Ele só se modificou, e precisa ser acompanhado de outras medidas que possibilitem mantê-lo sob controle sem impedir a política. Órgãos de controle interno têm adotado interessantes iniciativas nesse sentido nos estados da Federação no que se refere ao enfrentamento da Covid-19.

Controles desalinhados, ausentes ou em excesso, nesse momento de pandemia, podem gerar medo nos gestores da saúde e provocar um verdadeiro “apagão de canetas”, ou dar espaço para atos de corrupção, como descrito nas notícias veiculadas pela imprensa e que corroboram essa hipótese. O que se precisa é de uma boa estrutura de controle, articulada, com a atuação dos atores envolvidos, cobrando os gestores, mas também entendendo o contexto que demanda uma ação expedita.

A fricção faz parte da accountability. Mas o entendimento do contexto é que faz dessa luta entre atores uma força de promoção da eficácia e da eficiência. Ruim é comprar caro e receber o produto errado, e isso pode se dar pela corrupção, mas também pelo controle em excesso, que engessa. Controladores e gestores estão em lados opostos, mas à beira das margens de um mesmo rio; rio esse que precisa desaguar no combate ao coronavírus, para o bem de todos os ribeirinhos.

Marcus Vinicius de Azevedo Braga é doutor em Políticas Públicas. Sandro Sabença é mestre em Direito da Regulação.

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