Nada mais natural no Brasil essa organização de marginais em facções. Na ausência de uma república que inclua todos os cidadãos, ou seja, de uma verdadeira República, ou de um contrato social amplo que os reconheça, aqueles que estão fora do estado civil tenderão a associar-se, a formar pactos próprios, em busca de um fim comum. Os homens têm disposições antagônicas preconizou Kant, lá pelos 1.700 , tendem ao conflito, ao egoísmo e à preguiça, ao mesmo tempo em que têm uma necessidade de viver em comunidade. Para resolver essa "insociável sociabilidade", a única saída, destacou o filósofo, é a constituição de uma sociedade civil na qual todos, sem exceção, os cidadãos sejam independentes, estejam submetidos à mesma lei, sejam igualmente sujeitos de direito e livres, mas com a condição de que a liberdade de um possa coexistir com a de outrem. A ausência dessas premissas corresponde a um estado permanente de conflito, de ameaças, no qual será impossível conviver.
Não é exatamente isso que vemos ocorrer hoje no Brasil? Em nossa sociedade, formada por uma bela Carta dirigente (leia a nossa Constituição, a sociedade à qual ela pretende nos conduzir é linda, sério), os direitos na prática não valem para todos. É só conferir o perfil dos presidiários brasileiros negros, pobres em sua maioria. No antigo Carandiru, relatou Drauzio Varella em seu livro "Estação Carandiru", três gerações avô, pai e filho chegaram a cumprir pena simultaneamente no mesmo pavilhão. Uma família de condenados. De fato, representantes de uma parcela de condenados da nossa sociedade. Condenados a escolas de baixa ou nenhuma qualidade e a viverem em subabitações, à falta de saneamento, à ausência de uma estrutura minimamente decente de serviços de saúde. Pior, para 40% dos jovens do sexo masculino de 15 a 24 anos, a condenação é à morte por homicídio, conforme apontou a última Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad).
Se é a essas condições de vida, a essa situação de ausência de direitos, que o nosso Estado encaminha grande parte da população, não é de se espantar que ela se organize para sobreviver. Longe de mim fazer apologia à violência, mas, enquanto não tivermos um único país, uma República de fato, a massa de excluídos vai se estruturar de alguma maneira. Muitos, com apoio do terceiro setor, montarão outras ONGs para tentar incluir os sem-república; alguns como já vemos nos crescentes e recentes ataques no Rio de Janeiro e em São Paulo se aglutinarão em facções criminosas. É por intermédio dessas organizações do crime, com seus próprios códigos, com seus próprios direitos (vale lembrar que até um sistema de previdência social o PCC formou para as viúvas do tráfico) que muitos tentarão garantir sua existência, mesmo que com métodos moralmente inaceitáveis. E aí remeto a Kant novamente: até entre um grupo de demônios é possível constituir um Estado, escreveu, desde que haja um acordo entre todos. Pois será que não é isso que os criminosos fazem? Organizam-se numa sociedade de leis não escritas, mas aplicáveis e válidas a todos que ingressam nessas facções. Quer algo mais rigoroso que a "lei" dos presidiários? Com esse nível de desigualdade social que mantemos desde a formação de nosso país, parece que caminhamos para termos, sim, duas repúblicas, e que, inevitavelmente, permanecerão em guerra: esta em que vivemos, pretencente a nós, na qual nos horrorizamos com a crueldade dos ataques criminosos; e outra, dos demônios do crime, dos muitos que, impedidos de entrar na nossa, constituem a sua. E assim, não haverá forças de segurança, polícias inteligentes e bem-aparelhadas suficientes para promover a paz entre as duas.