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É preciso definir uma maneira de acabar com o assédio sexual
| Foto: Pixabay

No mês passado, Joe Biden me ligou para falar a respeito de sua conduta durante as audiências de confirmação à Suprema Corte de Clarence Thomas, em 1991. Muito se tem discutido ultimamente a respeito de sua escolha de palavras na época. Dados o movimento #MeToo e o lançamento de sua pré-candidatura à presidência, é compreensível que seu papel naquele procedimento volte à baila.

Se o Comitê Judiciário do Senado tivesse feito sua parte, realizando uma audiência que mostrasse compreender a seriedade do assédio e outras formas de violência sexual, a mudança cultural que vimos em 2017, após o #MeToo, talvez tivesse começado naquele ano, e com o apoio do governo.

Poderia até ter tido um efeito cascata, pois aqueles que pediam mudanças estariam agindo a partir de uma posição mais vantajosa. Teria dado a instituições como as Forças Armadas, o Departamento de Educação e a Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego mais espaço para agir de forma mais decisiva e acabar com o flagelo que é o assédio.

Pesquisas mostram que, se a liderança deixa claro que não tolera esse tipo de violência, as pessoas que fazem parte da organização normalmente acatam. O que acontece, porém, é que muitos sobreviventes mantêm suas histórias em segredo durante anos.

Desde meu depoimento, há 28 anos, milhares de homens e mulheres compartilham suas histórias de violência sexual comigo. São relatos assustadores, principalmente por virem de todo lugar – e, no entanto, foram mantidos invisíveis durante muito tempo, uma vez que o público via comportamentos como extorsão/violência sexual como questões pessoais que deveriam ser resolvidas em particular.

O mundo só começou realmente a admitir o predomínio dessas atitudes em 2017, quando os milhões de sobreviventes que se tornaram o #MeToo acabaram com o mito de que a violência sexual era insignificante.

O movimento, fundado pela ativista Tarana Burke, nos ensinou que esse tipo de violência acomete pessoas de todas as idades, raças e etnias, independentemente da classe social. E, embora nenhum grupo esteja imune, alguns – como as mulheres de cor, minorias sexuais e os deficientes – são mais suscetíveis que outros. Aí também se incluem funcionários contratados e autônomos, que não contam com as proteções trabalhistas tradicionais. Os de baixa renda e os que dependem de gorjetas, que podem enfrentar retaliações que impliquem na perda de seu sustento, são os mais ameaçados.

E, conforme as revelações que o #MeToo estimulou escancararam a verdade e a enormidade absurda do problema, as vítimas ousaram ter esperanças de que os líderes políticos tivessem a coragem de enfrentá-lo – mas essa expectativa foi frustrada no ano passado.

A dra. Christine Blasey Ford também enfrentou o Comitê Judiciário do Senado, em 2018, que analisava a indicação de outro nome para a Suprema Corte, o de Brett Kavanaugh, a quem ela acusara de violência sexual – e mais uma vez a impressão foi a de que a conveniência política do processo era mais importante que a verdade.

Depois do depoimento corajoso de Blasey Ford, os mais atentos viram na atitude insensível e na mão pesada do presidente da comissão – o senador, pela Carolina do Sul, Lindsey Graham – um replay do ocorrido no processo de indicação de Clarence Thomas.

Pior ainda, a nova geração foi forçada a concluir que a política pode superar uma expectativa básica e essencial – a de que as alegações de abuso sexual têm de ser levadas a sério.

O mau comportamento não desapareceu, apesar dos esforços valiosos dos integrantes do #MeToo; muito pelo contrário. Uma pesquisa anônima recente, feita pelo Departamento de Defesa, revelou que o assédio e a violência sexuais cresceram 38% de 2016 a 2018; o Pentágono calcula que 13 mil mulheres e 7.500 homens foram agredidos sexualmente no ano passado. Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, 33% das mulheres e 25% dos homens enfrentam a agressão sexual em algum momento da vida. De acordo com a Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego, as denúncias de assédio aumentaram 12% entre 2017 e 2018.

Não é exagero calcular que uma em cada três famílias norte-americanas está enfrentando as dificuldades econômicas, de saúde ou de segurança que acompanham as violações sexuais.

Apesar da realidade sombria, mantenho as esperanças, sabendo que progredimos muito. Se reconhecermos a gravidade do problema e exigirmos processos nos quais todas as vítimas de assédio e agressão sexual forem ouvidas – e não ignoradas ou punidas por denunciarem –, nossos líderes farão o mesmo. Os sobreviventes e seus defensores precisam de reconhecimento e justiça.

Palavras de consolo jamais poderão substituir as ações que visam acabar com o mal. Há algumas medidas que podem mostrar que nosso governo está pronto a reagir aos sobreviventes. Os líderes do Senado deveriam adotar um processo justo e transparente para atuar sobre as denúncias feitas a indicações presidenciais, com as investigações sendo conduzidas por um partido independente.

Muitas pessoas cujo trabalho contribui para nossa economia não têm nenhuma proteção contra os abusos. O Congresso deveria aprovar leis como o Ato Seja Ouvido (Be Heard Act), proposto em abril, que estende as proteções federais contra assédio sexual e discriminação a contratados, autônomos e outros trabalhadores não tradicionais, com atenção especial à parcela de baixa renda.

No mínimo, nossos representantes devem garantir que os militares, que dão tudo de si para defender o país, sejam protegidos do assédio e da violência sexual. E ponto final.

Em longo prazo, eles têm de fazer algo a respeito das desigualdades que permitem que a má conduta sexual se manifeste.

A violência sexual é uma crise nacional que exige uma solução da mesma magnitude – e estaremos ignorando esse fato se o foco da discussão recair no fato de eu perdoar Biden ou não. É um problema que demanda ação imediata dos líderes. E está mais que na hora de encararem o desafio.

Anita Hill é professora de políticas sociais, direito e estudos femininos e de gênero da Universidade Brandeis.

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