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Passou sem muito alarde, ofuscado pela visita do Papa ao Brasil, o 119.º aniversário da Abolição da Escravatura. Parece estranho, à primeira vista, que uma data tão importante para a História do Brasil tenha passado despercebida. Mas há uma explicação. Ao longo desses 119 anos, fomos incapazes de completar o ato de uma princesa no dia 13 de maio de 1888.

A verdade é que aquela lei magnífica, de um único artigo, extinguiu a possibilidade de venda de seres humanos, bem como do uso de trabalhos forçados. Mas ela não acabou com a escravidão. Proibimos o trabalho contra a vontade e sem remuneração, mas permitimos o desemprego. Autorizamos os escravos a deixarem as senzalas, mas os liberamos para as favelas, o relento dos viadutos, as tendas do MST. Deixamos de enviar para a senzala as sobras da casa grande, e criamos uma fome que o escravo não passava. E o mais grave: abolimos a proibição de que os filhos de escravo fossem à escola, mas não os colocamos nas escolas. Eles foram deixados "livres" para perambular pelas ruas, abandonados.

Na época, a Lei Áurea foi aprovada, mas recebeu grandes contestações dos senadores contrários à abolição. Eles afirmavam que o Brasil devia, sim, eliminar a vergonha do elemento servil, mas que ainda não era hora de fazê-lo. Argumentavam que a agricultura se desarticularia. Que era preciso aguardar a chegada ao Brasil de imigrantes brancos.

Hoje ouvimos de nossos parlamentares discursos semelhantes. Não somos contrários à abolição do analfabetismo, mas não encontramos os recursos suficientes. Afirmamos que uma revolução na educação é prematura; que ela deve ser gradual. Ou que precisamos, sim, melhorar a educação, mas que essa é uma tarefa dos municípios.

Imaginemos que a Princesa Isabel tivesse encarregado os prefeitos de abolirem a escravidão nas suas cidades. Provavelmente, encontraríamos escravos em todos os municípios brasileiros, até hoje. Por que então nos recusamos a tomar decisões federais para que todas as crianças tenham uma escola de qualidade? Por que nos recusamos a adotar uma política salarial federal para os professores? Por que evitamos uma lei federal que determine os padrões mínimos de qualidade de uma edificação para que seja considerada escola, evitando assim a utilização de prédios sem água, sem luz, sem banheiros, sem bancos, sem telhado?

Devemos ser francos e admitir que, nesses 119 anos, fomos incapazes de completar o gesto da Princesa Isabel. Os seres humanos não podem mais ser vendidos, mas permanecem abandonados. E a chave de tudo, insisto, está em garantir uma escola igual para o filho do rico e o filho do pobre. Um país não tem o direito de promover uma educação desigual para crianças e jovens, impedindo-os de desenvolverem livremente seu talento, sua persistência e sua vocação.

A Abolição será completa somente quando, no nosso país, as 164 mil escolas públicas tiverem a mesma qualidade, e cada criança tenha as mesmas chances de construir um futuro de dignidade e liberdade.

Falta vontade nacional, não municipal. Vontade como teve a Coroa, em 1888, quando uma princesa assinou: "Está extinta a escravidão no Brasil". Agora, uma só lei não bastará, precisaremos de um conjunto de leis. E não será possível promover uma revolução na educação em só de um dia. Levará dez, quinze anos, até completarmos a Abolição. Mas ela é possível. Basta colocarmos a educação em primeiro lugar.

Cristovam Buarque é senador.

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