• Carregando...
Entre o tempo do governo e o tempo do direito
| Foto: Felipe Lima

A reforma administrativa deverá se aplicar aos atuais servidores públicos? Em parte. A resposta pode parecer insatisfatória ao observador apressado, mas, parafraseando H.L. Mencken, todo problema complexo costuma vir acompanhado de respostas simples, elegantes e completamente erradas.

À parte as afirmações, pelo governo, de que a reforma apenas se aplicará a servidores que vierem a ingressar no serviço público após a sua vigência, não é verdade que nenhuma das novas regras se aplicará aos servidores atuais. Por outro lado, há regras aplicáveis aos servidores atuais que, independentemente de qualquer desejo do governo, não poderiam ser alteradas senão pela promulgação de nova Constituição. O tempo do governo não é, necessariamente, o tempo do direito.

A compreensão desse tema demanda a compreensão de dois conceitos jurídicos: o de direito adquirido e o de regime jurídico dos servidores públicos.

Por direito adquirido deve-se entender a configuração de situação na qual um sujeito preencheu todos os requisitos para usufruir um direito, esteja ele usufruindo esse direito ou não. Imagine-se o caso de servidor que cumpriu todos os requisitos para a obtenção de benefício previdenciário. Ainda que sobrevenha alteração legislativa que imponha requisitos adicionais, o servidor já adquiriu o direito àquele benefício.

A Constituição alçou o direito adquirido ao status de direito fundamental e, portanto, de cláusula pétrea, de modo que nem mesmo emenda constitucional poderá aboli-lo. Trata-se de garantia vinculada à ideia de segurança jurídica. A conclusão é que direitos adquiridos pelos servidores atuais jamais poderão ser tocados pela reforma, ainda que desagradem o governo.

As discussões mais relevantes aparecem, no entanto, quando da definição do que é abrangido pelo conceito de direito adquirido. Aqui, ganha importância o segundo conceito acima mencionado, de regime jurídico do servidor público.

É que se tem fixado o entendimento de que o servidor não tem direito adquirido ao regime jurídico aplicável quando assumiu sua função pública. Por regime jurídico, entenda-se o conjunto de normas jurídicas aplicáveis num dado marco temporal. O raciocínio baseia-se na premissa de que, como regra, o Estado tem o poder de modificar as normas aplicáveis ao serviço público, inclusive para reduzir direitos de servidores. Não fosse assim, o regime dos servidores permaneceria engessado, e a necessária adequação social do direito ficaria comprometida.

A situações futuras, nas quais nenhum direito do servidor tenha se consolidado, se deverá aplicar o novo regramento, mesmo que ele seja desfavorável ao servidor, aí incluídos os servidores atuais. Alterações nas regras do processo administrativo disciplinar, por exemplo, se aplicarão à apuração de fatos futuros que envolvam atuais servidores.

Assim, a menos que a reforma estabeleça exceções e especifique quais regras se aplicarão somente aos servidores futuros, várias situações futuras vivenciadas por servidores atuais serão regidas pelas novas regras. Mas o poder de reforma constitucional não é ilimitado. Toda alteração que pretender abolir direitos fundamentais dos servidores – como a aventada extinção da necessidade de processo administrativo disciplinar para a demissão – será fatalmente inconstitucional.

André Portugal é advogado, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e professor do Law Experience do FAE Centro Universitário.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]