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Escolas fechadas e nossos filhos desaprendendo: futuro perdido?
| Foto: Unsplash

Ao cair da cortina, após o espetáculo em que ficamos boquiabertos pela transformação e subjugo a que nos impôs o coronavírus, como qualquer ser vivente pensamos em novas saídas, estratégias, invencionices e criações. Como um computador em modo de segurança, foi necessário criar novas e rápidas respostas para aquilo que nem o modelo educacional presencial nem a educação a distância, já anteriormente considerada para a etapa da educação básica, conseguiriam responder dentro da celeridade necessária. A partir dessa ruptura surge, para muitas escolas e estudantes, um novo jeito de usar um recurso já conhecido, o on-line, remoto ou síncrono, para a realização de encontros com os estudantes e continuidade do processo educativo.

Para uma parcela de estudantes, o uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs), nesses últimos meses, foi o único contato com a escola. Já em outros lugares, distantes ou marginais aos centros urbanos, incluindo aqui as zonas rurais, onde mora a grande maioria dos matriculados em escolas públicas, esse acesso ficou dificultado pela falta de internet e dispositivos tecnológicos, como afirma recente pesquisa publicada pela TIC Educação.

Diante das dificuldades pandêmicas e paradoxos de realidades tão distintas no Brasil, a educação formal continuou no seu sério processo de deterioração, cujo desencadeador não foi o vírus, apesar do importante complicador imposto. A falta de metas e objetivos claros dos governos, das escolas, da sociedade e da família sobre a importância e os rumos da educação que se quer; o obscurantismo metodológico, que não considera a forma como o ser humano aprende em sua essência, colocando-o como agente passivo de sua própria aprendizagem; e a obsoleta formação inicial docente fortaleceram o caos provocado pelo coronavírus.

Não obstante, a pandemia surpreendeu pela rápida capacidade das escolas em tentar resolver o enorme problema que nos assolou. O paradigma da presencialidade, praticada em 100% das escolas de ensino básico no Brasil durante séculos, rapidamente foi reordenado e deixado para trás. Ficamos refletindo o quanto somos todos capazes de mudar e transformar tudo a qualquer momento, bastando uma boa e forte razão para isso. Com o fechamento das escolas e da cessação das aulas presenciais, foram-se vários outros paradigmas por terra, como a contabilização da carga horária, a frequência, a listagem de conteúdos, as provas, o cabeça atrás de cabeça, a ordem e o silêncio para o professor ensinar, além de muitos outros. A grande dúvida sobre a possibilidade de aprendizagem fora da escola foi potencializada – afinal, agora, estamos sem escola.

De repente, 48 milhões de estudantes matriculados na educação básica, segundo o Censo Educacional da Educação Básica de 2019, ficaram encerrados em seus lares diante do cancelamento das aulas presenciais pelo Ministério da Educação, de acordo com a Portaria 343, de 17 de março de 2020. Juntando-se a isso, e anteriormente ao próprio cancelamento de aulas, o Decreto Legislativo 6, de 2020, declarou estado de calamidade pública e orientou uma nova forma de ser e estar no âmbito da pandemia para todos, incluindo comércio, empresas, vendedores ambulantes, fábricas e qualquer outro modo de economia e convivência baseadas no modelo presencial. O mais impressionante, já apontado acima, foi que rapidamente nos reorganizamos e em pouco mais de um mês estávamos atrás de câmeras de vídeo, luz especial, internet de boa qualidade, comprando ou utilizando aplicativos de aula on-line em uma explosão de lives, manuais, tutoriais e aulas on-line nas escolas. Além disso, comunidades inteiras foram acionadas e uma rede de solidariedade nasceu. Avós, padeiros, carteiros e várias outras pessoas e lugares da comunidade viraram pontos de apoio e kits de estudos foram entregues; celulares foram carregados com internet para crianças utilizarem como recurso educacional, e muitas ações partilhadas pela coletividade ocorreram. Que lição de cidadania!

Certamente o caos a que todos – principalmente as crianças e jovens em idade escolar – fomos submetidos terá grave consequência sobre o desenvolvimento social, físico, cognitivo e psicológico. Não somente para eles, mas para todo o sistema escolar, que, mesmo já não funcionando como deveria, estava organizado e em plena execução. Além do alto impacto de transformações na vida dos adultos, reorganizando seus trabalhos em casa, a vida escolar das crianças e adolescentes também precisou ser totalmente readaptada. Acreditamos fortemente que a sociedade como um todo aprendeu muito e a duras penas.

No histórico de mudanças ficará registrada a alteração no modelo e no tempo de estudo, na falta da professora para acolher, abrigar e ensinar, a passagem do espaço da sala de aula para a sala de estar da casa, a cozinha, a rua ou qualquer outro local disponível para estudar. Em alguns casos até mesmo o banheiro foi um espaço buscado. Nessa toada, foi crescendo a modificação das relações educacionais, a falta de amigos e professores, a mudança nos recursos e atividades desenvolvidas para folhas soltas de papel, leituras e exercícios sem fim na apostila. Ouvimos mães, pais e estudantes verbalizando que atividades aparentemente sem sentido e com instruções insuficientes foram encaminhadas. Com isso, ampliou-se o desespero de muitos pais e alunos que, já sem vontade de estudar pelo próprio caos instalado, desistiram, evadiram ou simplesmente se esconderam de qualquer tentativa de contato dos professores ou da escola.

Na verdade, a escola tentou, além de suas forças, se reinventar e criar outras formas de continuar sendo relevante, planejando outros meios para alcançar os estudantes. No entanto, no mais das vezes, não conseguiu. Em vista disso, ainda hoje e para o ano letivo de 2021 muitas especulações, dúvidas e temores ainda existem. Paralelamente a essas situações, ouvimos falar sobre uma séria perda de aprendizagem escolar, apontada em pesquisa feita pela FGV, que indica um retrocesso de até quatro anos. Que o caos instalado é irremediável e que crianças e jovens, em vez de aprender, estão desaprendendo. Essa questão nos leva a reflexões: pode alguém desconhecer o que conheceu? Desaprender o que aprendeu? Esquecer alguma lembrança que lhe foi muito cara? Pode não usar na vida os aprendizados para a própria vida? Ou estamos falando de outra escola? De uma que está alheia à vida, aos sentidos e utilidades das aprendizagens para a própria vida? Neste caso, acreditamos estar todos em apuros mesmo, e não é de agora.

Afinal, qual a razão, fundamento, motivo ou justificativa para ainda vivermos em um mundo com escolas, mesmo depois de tantas informações à disposição da humanidade? Talvez agora, mais do que nunca, seja preciso (re)pensar e repensar-se. Fazer uma introspecção de uma forma muito sincera e política em termos de refletir sobre a necessidade de ser e viver nesse mundo e não em termos de partidos, governos, lados ou privilégios! Se a escola se der ao luxo de continuar descontextualizada da vida, dos problemas cada vez mais complexos pelos quais o ser humano passa, se continuar a desconsiderar que cada estudante, além de precisar desenvolver suas capacidades e potencialidades, tem o direito garantido a essas aprendizagens e que o não desenvolvimento desses aspectos nesse espaço pode ser cobrado ou requerido pelos pais e sociedade, as questões sobre sua eficiência e necessidade cada vez mais virão à tona.

Podemos considerar as desaprendizagens trazidas acima, se partirmos da premissa de que a escola deve “dar conta” de uma listagem de conteúdos teóricos/programáticos, mesmo fazendo pouco sentido ou tendo pouca utilidade para a vida. Se pensarmos ainda no uso frequente e cotidiano de verbos que se traduzem nesse modelo, como “decorar” e “memorizar”, que apenas funcionam enquanto estão sendo vivenciados na prática ou postos em uso em uma prova, faz sentido temer pela desaprendizagem e o retrocesso é totalmente provável. Ao contrário disso, se partirmos de outro lugar, onde as crianças aprendem sempre porque são sujeitos, e não necessariamente e somente na sala de aula, então teremos descoberto que elas podem aprender muito na escola e que o que aprendem jamais desaprenderão, a menos que seja totalmente inútil.

Acredita-se, inclusive, em uma aprendizagem real ocorrida, e em ocorrência, durante essa caótica jornada que vivemos em 2020 e 2021. Acredita-se que o que nossos filhos, alunos e humanidade estão passando pode potencializar o desenvolvimento de habilidades e competências humanas fundamentais para sobreviver em um futuro muito próximo e que já pode ter nos alcançado agora. Quem de nós não teve perdas? Quem de nós não teve medo? Quem de nós não sabe pelo menos alguma coisa sobre vírus, contágio, estatísticas, profilaxia, empatia, solidariedade, tristeza, desemprego? Penso que estivemos e estamos na fúria da escola da vida e, de qualquer forma, aprenderemos e muito. Infelizmente, perderemos alguns nessa estrada; outros serão irremediavelmente feridos; e outros, de uma ou outra forma, sairão fortalecidos e prontos para seguir.

As aprendizagens da realidade da vida desenvolvem mentes fortes, resilientes, capazes de se transformarem e adaptarem-se a mudanças drásticas. E, para que isso possa ser aproveitado como insumo de aprendizagem escolar, novas formas, modalidades, metodologias, atividades e recursos precisam ser pensados a partir de agora para a escola. O modelo anterior já não serve mais e há muito tempo. Os professores que estão conseguindo olhar para essas realidades e somar essas contingências aos conteúdos teóricos da escola, aos seus programas curriculares, estão vendo por meio das tecnologias uma possibilidade instrumental de transformar a educação para a reflexão em algo bem maior que o que os próprios recursos oferecem. Assim, quem conseguiu somar os elementos vida real ao conteúdo teórico:

Replanejou espaços e tempos e construiu momentos de aprendizagem em que há tempo para que se fale sobre si, sobre o outro, sobre a realidade das perdas, das dores e da vida como ela é. Em que há tempo para construir coletivamente as aprendizagens, desde que significativas;

Replanejou o tipo de atividade promovendo espaços de autonomia e protagonismo e menos controle. Afinal, o professor transmitindo conteúdos teóricos, no centro do processo da aprendizagem alheia, não dá conta de uma formação para competências complexas. Quem entendeu a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) percebeu que agora o estudante é o centro, já que é ele quem precisa desenvolver as habilidades. Quem conseguiu romper com algumas dessas barreiras também teve mais trabalho, mas mais sucesso e brilho no olho também!

Reinventou e replanejou a carga horária e frequência. No ensino presencial a carga horária se contava basicamente pela presença física do estudante, mas no virtual, ou em todos os outros modelos que se inventou, tornou-se insignificante. Agora se acompanha o desenvolvimento, não a presença; a compreensão e a interação, não a carinha no vídeo. Assim, a avaliação formativa também ganha força porque esse estudante produz mais, pensa mais e acaba, por vezes, se envolvendo mais porque também participa mais no processo. Logicamente, isso só será possível se o professor conseguir abrir mão do controle, do seu saber, do seu lugar privilegiado de fala e passar o bastão ao sujeito da aprendizagem;

Reinventou e usou recursos tecnológicos e didáticos diversificados. Daí entram várias mídias como vídeos, música, storytelling (que é a capacidade de encantar com histórias), o Team Based Learning (TBL) ou Aprendizagem Baseada em Times/Equipe/Grupos, projetos, mapas mentais, gamificação, desafios e todos os outros recursos que ajudam no desenvolvimento de diversas habilidades, inclusive as que chamamos de “mentais superiores”. Esses recursos, se bem colocados, inserem o estudante no centro da ação da sua aprendizagem, transformando-o em sujeito;

Reinventou e repensou sua metodologia, entendendo que é preciso construir um caminho claro e planejado, e que a principal meta da educação deve ser desenvolver a mente humana para a complexidade da vida.

Assim, é importante pensar que:

Não há aprendizagem sem metas claras: Saio desse ponto e pretendo chegar àquele outro. Para isso é preciso criar um caminho muito desanuviado e claro para todos. Logicamente, pode-se mudar as estratégias, os recursos e as atividades sempre que preciso for, mas o caminho para desenvolver mentes reflexivas e (cri)ativas jamais deve ser alterado, sob risco de continuarmos onde estamos na educação brasileira.

Não há aprendizagem sem planejar em comoenvolvero outro comosujeito da e na aprendizagem. Não é possível que o sujeito da aprendizagem não participe ativamente desse processo que é seu. Sem “sujar as mãos” a aprendizagem não acontece. É preciso o estudante ser e estar ativo nesse processo. Nesse lugar entra o professor estrategista que provoca, instiga e desestabiliza o estudante com a realidade da vida e, depois, traz o conteúdo teórico, para explicar o porquê de as coisas serem e acontecerem dessa ou daquela forma.

Não há aprendizagem sem avaliar ao longo do caminho, mais que ao final. Se o caminho for claro e límpido a avaliação o será também. Se oportunizamos o desenvolvimento de “habilidades superiores”, é possível avaliar esse processo ao longo da caminhada. Por isso será necessário que o professor tenha sempre em mente o que pretende. Pretendo desenvolver criticidade? Vou avaliar isso nos encontros, nas atividades, nos testes, nas provas, trabalhos e tudo o mais.

Não há aprendizagem sem partir de situações significativas da vidados estudantes.O ser humano é naturalmente investigativo e curioso e, quando se sente provocado ou desafiado, normalmente responde ao desafio: “os estudantes estão aptos a atuarem como pesquisadores”, basta que lhe demos um tempo para desenvolver essa competência, afirmou Nitish Monebhurrun.

Assim, se invertermos os programas e, em vez de iniciar o encontro pedagógico com os estudantes pelo conteúdo teórico (ou seja, por aquilo que explica), que na maioria das vezes não faz muito sentido inicialmente, iniciarmos pela provocação (problema, questão, fato ou desafio da vida real que precisa ser explicado), instigando a curiosidade e a investigação que são próprias desse ser humano e que lhe dizem respeito mais diretamente, o caldo está feito e o engajamento e aprendizagem acontecem mais naturalmente. Ocorre, no entanto, que na educação brasileira se inicia por aquilo que explica, antes daquilo que precisa ser explicado. Sempre temos uma resposta, mesmo não havendo uma pergunta.

Chegamos ao fim de uma breve reflexão sobre não ser possível desaprender, mas é possível não ter aprendido ou apenas ter memorizado; aí, sim, esse tipo de memória é de curto prazo e desaparece com o tempo. Além de uma explicação científica sobre memória, podemos dizer que nossos filhos e estudantes correm o risco, sim, de chegar à escola e lembrar de poucas coisas dos conteúdos teóricos escolares; não por causa da pandemia, mas porque até então esses conteúdos para pouco serviram, além de colocar uma resposta certa na prova e passar de ano. Aprender na escola deveria ser mais ou menos como aprender a andar de bicicleta, a cantar uma música há muitos anos esquecida ou a olhar uma fotografia de uma pessoa amada. As lembranças vêm aos poucos, montando um quebra-cabeça maior até mesmo que nosso entendimento e são o uso, a necessidade, a vontade e o desejo que despertam esse aprender significativo e também essa memória cheia de percepções e sensações. O segredo? Fazer educação com sentido, com utilidade e com emoção.

Maristela Barcelos Castro é pedagoga, mestre em Políticas Públicas, especialista em Psicopedagogia e Educação a Distância, e diretora na Inovare Educacional. Adelar Hengemühle é graduado em Letras, mestre e doutor em Educação.

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