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“Fake news” ou desinformação?
| Foto: Pixabay

Há meses, trivializou-se a locução fake news, que a mídia emprega para nomear a divulgação maciça e deliberadamente manipulada de informações falsas, engendradas intencionalmente com fins políticos.

Fake é adjetivo de coisa: objeto contrafeito, falsificado, imitado; é adjetivo de pessoa: impostor, charlatão; é verbo: contrafazer, falsificar, forjar. Assim, fake news é traduzível (em sentido literal) por “notícias contrafeitas”. False é adjetivo de pessoa: indivíduo falso, dissimulado, fingido, e de coisa: objeto falso, de fantasia, imitante o verdadeiro, contrafeito. Em inglês, fake e falso equivalem-se.

A notícia apenas falsa corresponde à mentira (com dolo ou sem ele, esteja-lhe o autor cônscio de que partilha conteúdo falso ou não); a fake news corresponde à mentira congeminada intencionalmente, de cujo teor se cogitou, que se maquinou com vistas a induzir a opinião pública em dado sentido, a formar corrente de opinião conveniente aos interesses de seu mentor; ela constitui desinformação difundida em grande escala, para multidões, destinada à massa: é desinformação maciça ou simplesmente desinformação.

Vladimir Volkoff define desinformação como manipulação da opinião pública para fins políticos graças à informação trabalhada por processos ocultos. Ela a) é aplicada não a pessoas individualmente visadas, mas à generalidade do público, ao grande número; b) sua destinação é política, ela exerce-se no âmbito das disputas de grupos que almejam o poder político, nele permanecer e dele alijar seus êmulos; c) faz-se com informações, com dados que se cria deliberadamente, como produtos da análise das circunstâncias presentes e das reações que se deseja surtir; d) é engenhada às ocultas, sigilosamente, sem que se possa facilmente identificar-lhe os mentores.

A desinformação é diferente da propaganda, da publicidade, da intoxicação. Todas comunicam conteúdos, mas:

a) a propaganda não se volta necessariamente ao grande público e caracteriza-se por ser confessada, explícita, reconhecível como tal. Louve ou denigra objeto, pessoa, nação, ocorrência, instituição, seu intuito é precisamente o de louvar ou denegrir, sem mais intenções. Por exemplo: “a homofobia é censurável pois causa sofrimento injusto”, “fulano merece nossas homenagens”.

b) a publicidade aplica-se ao grande público e visa a promover pessoa, objeto, produto, mercadoria, para granjear em seu favor a preferência de fregueses, compradores, tomadores de serviços, mais por sedução do que por persuasão. Ela menos argumenta do que associa seu objeto a outros, potencialmente atraentes. Por exemplo: “Os brinquedos Estrela brilham no céu de seus filhos”; “Ler livros de Harry Potter resolve seus problemas em um passe de mágica”.

c) a intoxicação consiste na propinação de informações falsas a destinatários específicos para levá-los a tomar decisões erradas, favoráveis ao intoxicador. Por exemplo: o espião propicia ao inimigo militar dado falso para que o respectivo chefe adote estratégia que lhe seja inútil.

As notícias contrafeitas, tal como a elas se refere à locução fake news, correspondem a informações engendradas criteriosa e sigilosamente para despertar correntes de opinião em matéria política: elas coadunam-se com o conceito de desinformação. As mal chamadas fake news são desinformação. Em lugar de referirmo-nos à investigação das fake news, referir-nos-emos melhor à investigação da desinformação; ou em vez de que fulano foi acusado de propalar fake news, que o foi de propalar desinformação.

O vocábulo “desinformação” é usável coloquialmente, bem assim no meio jurídico e noticioso. Jornalistas, comentadores, juristas, populares, podem servir-se dele em lugar de fake news, que substitui à perfeição. Erradiquemos tal locução; empreguemos, sempre e orgulhosamente, o vernáculo “desinformação”.

A nomenclatura dos crimes exige esmiuçamento: “prevaricação”, “concussão”, “tráfico” e os demais nomes são palavras cuja compreensão depende de definição, que por sua vez contém elementos técnicos de direito penal. O nome do crime identifica dado comportamento e resume os elementos que a respectiva definição e a doutrina explicitam; por isso, ao chamar-se as notícias de desinformadoras e ao referir-se à desinformação, a definição do crime ou o exame do jurista conterá os elementos de falsidade intencional, de propagação maciça, de dolo, de sigilo na sua produção, de afã de influir na opinião pública.

Se inexistisse o vocábulo desinformação, poder-se-ia substituir aquela expressão por tradução, sucedâneo ou neologismo (demais, qualquer estrangeirismo é substituível por qualquer uma dessas formas): como tradução dir-se-ia, por exemplo, “notícias fabricadas”; como sucedâneo dir-se-ia anti-verdades ou contra-verdades; como neologismo dir-se-ia pseudança (pseudo + ança). Todas essas formas são aptas a inculcar em vernáculo o que com estrangeirismo dispensável a carência de espírito vernacular de uns e a abundância de espírito de mimese dos demais puseram em circulação.

Como qualquer inovação terminológica, bastou o uso da expressão fake news para que, sem necessidade de explicações semânticas, rapidamente as pessoas compreendessem-lhe o significado, após alguma estranheza e dúvida iniciais. Da mesma forma, sem carecerem de elucidações léxicas, depressa as pessoas atinarão no sentido dessas alternativas: basta empregar qualquer uma delas no contexto correto.

Anos atrás, leram em inglês impact e fabricaram impacto e impactar, não no sentido legítimo, em português, de colisão, choque, embate violento de massas sólidas e sim no de efeito, conseqüência.

Atente em que "impacto" no sentido de efeito não integra o português legítimo: é estrangeirismo (anglicismo). Atente em que impactar no sentido de produzir efeito não pertence ao português puro: é estrangeirismo (anglicismo).

Bem traduzir não é imitar, não é decalcar, não é ler impact (na acepção de efeito) e verter por “impacto” e sim ler impact (na acepção de efeito) e verter por efeito, conseqüência, influência, consectário; é ler to impact e verter por afetar, interferir em, entender com, dizer respeito a, prejudicar, lesar, beneficiar, favorecer e sem-número de verbos consoante o contexto.

Diremos, pois: “Os efeitos da pandemia na economia”, “As conseqüências da crise política”, “Como o vírus afeta seu corpo”. “Impacto” e “impactar” são exotismos desnecessários, cafonas e que já enjoaram. Público em geral e diários desdenham de usar sete e mais palavras vernáculas que os substituem com vantagem da variedade e da precisão. Nosso rico e belo idioma têm inúmeras palavras genuínas, que nos dispensam desses estrangeirismos. Público em geral e gazetas em especial, se querem comunicar-se com qualidade, devem evitá-los e procurar, sempre, boas soluções vernaculares.

Todo estrangeirismo é suscetível de substituição por equivalente vernacular. Traduza literalmente se fizer sentido; introduza neologismo com afixos e raízes gregos, latinos e vernaculares, e consoante a morfologia vernacular (consulte gramáticas); aportuguese (esqueite, esfirra, pitsa); repila sempre os estrangeirismos: assim proceder integra a educação da pessoa e a sabedoria no idioma.

Louvo o proceder dos portugueses. Sirva-nos ele de exemplo: traduzem ou adaptam quase tudo às formas do vernáculo. Lá surgiu o “teletrabalho” no início do confinamento na atual pandemia. Também lá, há décadas, grafa-se equipa e controlo, aportuguesamentos corretíssimos do francês “equipe” e “controle”. Também lá até as crianças usam mesóclise, tu, nós, vós, e todos os três corretamente conjugados.

Arthur Virmond de Lacerda Neto cursou História do Direito na Universidade de Lisboa, lecionou Direito por 25 anos; publicou “A desinformação anti-Positivista no Brasil”, dentre outros vários.

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