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Formas de vida
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

O ambiente em que vivemos é composto de inúmeras formas – urbanísticas, arquitetônicas, artísticas, na forma de organizar as relações humanas, o trabalho, o vestuário etc. – que não são naturais: são criações humanas inventadas por algum motivo, e com uma determinada intenção. Essas intenções se traduzem em formas que balizam a nossa ação quotidiana, e são imitadas de geração em geração.

Com o passar do tempo podemos usá-las desconhecendo completamente a sua significação, de mistura com outras formas que por vezes refletem intenções contraditórias. Somos, assim, expostos continuamente a um aglomerado de intenções esquecidas, que já não significam mais nada e nos deixam perdidos como Dante em meio à selva selvaggia, assustadora e sem caminhos que indiquem um sentido. Crescemos numa sociedade que nos oferece uma grande quantidade de informação – abundante e incompreensível, sem forma definida e que, portanto, não tem para nós uma significação humana.

A sobrecarga de informação sem sentido destrói a inteligência. Redescobrir o significado das formas equivale a salvar a inteligência, porque a inteligência não pode coexistir com a completa inconsciência de si mesma. E o trabalho da consciência começa com a iniciativa de recontar a própria história e reconhecer um sentido no que era, antes, uma multidão caótica e sem finalidade.

Em praticamente toda a tradição ocidental o modelo educativo foi a Educação Liberal, que tem como base o estudo das obras mais importantes da cultura, que nos dá o conhecimento dos símbolos e das formas mais significativas, na literatura e nas artes, junto com uma certa noção da sua transformação ao longo do tempo. Estas formas apresentam modelos de vida, claves de autocompreensão e de expressão das impressões vividas. Assim, é possível ter o sentido da unidade da própria personalidade a qual, por sua vez, se conhece e se define mais claramente em relação às possibilidades presentes na história e na cultura do seu povo. Só então a ação política começa a fazer sentido.

A educação contemporânea, apesar de altamente politizada, não mais fornece os elementos que permitiriam ao homem orientar-se no caldeirão cultural no qual boia como numa massa homogênea e indistinta. E o mesmo Estado que declara a soberania popular não apenas não consegue contribuir para a elevação do nível educativo e cultural dos seus filhos – como é atestado pelos sucessivos fracassos dos estudantes brasileiros em testes internacionais – mas impede, de fato, qualquer possibilidade de que isso venha a acontecer, por meio da progressiva centralização curricular.

Nenhuma escola goza, no Brasil, da liberdade de montar livremente o seu currículo com base na Educação Liberal, ou de escolher os melhores exemplos, ao longo da história, como modelos para o próprio empreendimento educativo: o único fundamento aceitável é a Base Nacional Comum Curricular – a BNCC. Os livros didáticos já estão alinhados com a Base, e o próximo passo é a homogeneização dos cursos de licenciatura. Nunca tivemos tanto acesso à informação, aos clássicos da literatura e das outras artes, e tanta inconsciência da sua importância fundamental na formação humana.

Tendo sido educados, na infância, por literatura infantil e livros didáticos, que são desconhecidos fora da escola e desprovidos de excelência humana e literária – sem ressonância, portanto, no âmbito maior da cultura – somos em seguida expostos aos produtos da indústria cultural, como a publicidade, a música comercial, as séries de televisão e as comédias românticas, nos quais nos espelhamos e conformamos a nossa sensibilidade, nossas aspirações e concepções humanas. Mas, em geral, estes subprodutos não apresentam dramas e sentimentos reais, mas simulacros nos quais muitos de nós gostariam de se reconhecer.

Por serem modelos falsificados, as tentativas de conformar a própria vida a partir destes moldes diminuídos tendem a dar resultados menos cinematográficos e mais frustrantes; frequentemente a depressão, a neurose, a loucura que devem ser cada vez mais controladas por remédios psiquiátricos.

Por esse caminho não é possível planejar a própria vida de forma consistente e, consequentemente, também a ação organizada no âmbito maior da sociedade. Ao atomismo dos indivíduos, isolados pela falta de continuidade e sentido da própria vida, correspondem esforços econômicos e políticos isolados, inermes ante a ação organizada de instituições internacionais, que avançam quase sem resistência suas agendas no Brasil.

As classes dirigentes da sociedade precisam orientar-se corretamente – conseguir distinguir as formas presentes na nossa vida quotidiana e ter um domínio suficiente da linguagem – para que a existência coletiva possa ter um sentido comum e compartilhável. Para tanto, devem receber uma educação baseada na absorção de obras originais e fundadoras da cultura.

Se – como muitos gostam de repetir e a nossa Constituição declara textualmente – o poder emana do povo, como é possível esperar que ele exerça algum poder sem a capacidade de ler e compreender um texto, e sem compreender as formas elementares da sua existência? Se as ações governamentais parecem nos levar na direção contrária, conviria levar mais a sério a ideia de que “o poder emana do povo”, e começar a exercê-lo agora mesmo, em primeiro lugar e diretamente, através da ordenação da inteligência. Só quem conseguir vencer as próprias limitações e atingir este patamar poderá ajudar as pessoas ao seu redor, e estas, por sua vez, poderão estender este benefício a um número maior. Trata-se de uma exigência inescapável que só pode dar resultados significativos em médio e longo prazos mas, se não fizermos nem isso, tudo o mais será em vão.

Fausto Zamboni, doutor em Letras, é professor de Língua e Literatura Italiana na Unioeste/Cascavel e autor de “Contra a escola: ensaio sobre literatura, ensino e educação liberal” e “A opção pelo homeschooling”.

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