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CNMP pune Deltan por tuítes contra Renan Calheiros em 2019
CNMP pune Deltan por tuítes contra Renan Calheiros em 2019| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil

Ministros de uma suprema corte, disse o jurista romeno Alexander Bickel, entre as décadas de 50 e 60, são verdadeiros “professores em um seminário coletivo de construção de sentido da Constituição”. Respondendo à pergunta – célebre no campo da teoria e do direito constitucional – “o que justifica o controle judicial de constitucionalidade?”, Bickel responde, sabiamente, que um dos motivos que justificam tal modalidade de controle é que essa instituição – uma suprema corte – é a menos perigosa, dentre os ramos de poder, quando em jogo a pronúncia e guarda de valores relevantes para uma determinada comunidade política.

A partir dessa conclusão, uma primeira pergunta que surge é a seguinte: quais são os valores relevantes para a comunidade política brasileira, de modo que possam vir a ser pronunciados e guardados, geração após geração, por uma suprema corte? Essa pergunta, no entanto, merece ser respondida em outro momento.

O Supremo Tribunal Federal, já dissemos em outra oportunidade, é órgão de cúpula de poder político e que, por esse motivo, profere decisões afinadas com a realidade social, econômica e política brasileira, limitadas (as decisões) a um complexo sistema jurídico-normativo construído intersubjetivamente e historicamente. Ou seja, trata-se de aceitar que a suprema corte decidirá a favor ou contra demandas coletivas de momento, de circunstância, porém, jamais afinadas com uma propulsão subjetiva de condenação ou retaliação a alguém.

Dado o contexto e o teor de decisões e manifestações públicas, esse parece ter sido o caso do ministro Gilmar Mendes em relação ao procurador da República Deltan Dallagnol. Em decisão proferida em 4 de setembro, o ministro, ao acolher pedido da Advocacia-Geral da União no sentido de dar seguimento a processo administrativo em trâmite contra o procurador no Conselho Nacional do Ministério Público, justificou a decisão afirmando que “o não deferimento da medida contracautelar pode causar dano mais grave e mais extenso do que a manutenção da medida cautelar: o não julgamento de um réu eventualmente culpado configura situação mais grave do que o julgamento e a absolvição de um réu eventualmente inocente”.

Diante dessa afirmação, a pergunta que surge é a seguinte: esse fundamento é uma máxima objetiva que serve para todos os processos em idêntica situação, ou apenas para o processo que envolve o procurador da República? E, ainda: como pode o ministro adotar, em suas razões de decidir, um pressuposto mais prejudicial ao réu, a saber: que se deve dar prosseguimento urgente ao julgamento porque o réu é, supostamente, culpado?

As premissas de que parte o ministro não só violam o preceito fundamental de imparcialidade nas decisões judiciais, como também de igualdade no tratamento de todos os jurisdicionados que se encontrem em idêntica situação. A quem foge o conhecimento de que a pretensão punitiva de centenas de crimes verdadeiramente graves prescreve por morosidade do sistema judiciário brasileiro? Pesquisa recente feita pelo gabinete do ministro Roberto Barroso atesta que, em dois anos, 950 ações penais prescreveram no STF e no STJ. Dentre os réus dessas ações, aponta o mesmo levantamento, encontram-se o ex-presidente José Sarney, o deputado Aguinaldo Ribeiro, os senadores Fernando Collor, José Serra e Jader Barbalho, e o ex-ministro Eliseu Padilha. Pergunta-se: dada a sobrecarga de trabalho do sistema judiciário, a “Justiça” está sendo seletiva em desfavor de alguém, em específico?

Sendo esse o cenário, volta à tona uma das perguntas anteriores, sobre os valores relevantes para a comunidade política brasileira, e quem seria responsável por sua pronúncia e guarda, geração após geração.

Nesse contexto, sabe-se que a União foi condenada a indenizar o procurador da República Deltan Dallagnol por palavras – quando não injuriosas, no mínimo desrespeitosas – contra ele proferidas pelo ministro Gilmar Mendes. O procurador Dallagnol é autoridade pública, assim como o ministro. Apesar disso, o ministro referiu-se ao procurador e a todos os demais envolvidos na Operação Lava Jato como “cretinos”, “covardes”, afirmando se tratar a operação de uma “organização criminosa”. Afora os motivos jurídicos que eventualmente tenham levado o ministro a alcançar essas conclusões, o que se pergunta é: se o ministro pode se referir injuriosa e ofensivamente em relação a uma autoridade pública, por que não poderia ocorrer o contrário?

Gilmar Mendes inicia o despacho em que revoga a decisão liminar proferida pelo ministro Celso de Mello citando Ruy Barbosa e o próprio Deltan Dallagnol. Ao citar Ruy, refere-se ao distanciamento que se deve tomar, muitas vezes, das paixões populares. E, ao se referir a Dallagnol, ironicamente cita passagem em que o procurador afirma que “nosso sistema prescricional, aliado ao congestionamento dos tribunais, é uma máquina de impunidade”. Não se sabe por que razões o ministro iniciou uma decisão judicial com citações (fato incomum). Sabe-se, contudo, e por evidente, que não se distanciou de uma paixão – a subjetiva – ao se valer de sua posição para determinar o prosseguimento de um processo administrativo cuja prescrição, reafirme-se, aparentemente não traria prejuízos dos maiores à comunidade política brasileira, comparativamente a tantos outros procedimentos de natureza criminal que aguardam julgamento no Supremo Tribunal Federal.

E eis que em 8 de setembro o Conselho Nacional do Ministério Público referendou a posição do ministro. Na decisão, o conselheiro relator menciona que o procurador “violou dever funcional de guardar decoro pessoal” ao se manifestar publicamente em contrário à eleição, para a presidência do Senado, do senador Renan Calheiros. Deltan Dallagnol, ao publicar tuítes chamando a atenção da população para a eleição da presidência do Senado Federal, fez exatamente o que se espera de um agente público comprometido com valores e princípios caros à comunidade política brasileira. Para quem não sabe, advogados públicos defendem interesses do Estado-administração; advogados privados, os interesses particulares dos seus clientes; e procuradores e promotores de Justiça, como é o caso de Dallagnol, os interesses da sociedade. É ou não interesse da sociedade saber quem são os candidatos à presidência do Senado Federal, cujo eleito ultima sendo o presidente do Congresso Nacional? Em suas publicações, Dallagnol disse, muito objetivamente, que Renan Calheiros era alvo de inquéritos por corrupção e lavagem de dinheiro, e que não poderia ser eleito presidente do Senado, sob pena de se verem barrados projetos legislativos de combate à corrupção.

Sancionar o procurador da República por essa conduta pressupõe o seguinte: que os órgãos constitucionais de controle são tutelares de uma sociedade de incapazes. O conselheiro menciona expressamente na decisão que “as manifestações na mencionada rede social possuem mensagens fortes, que geraram repercussão em diferentes meios de comunicação no país”. Faz, ele mesmo, juízo de valor sobre a arena política, afirmando que agentes eleitos são “dependentes de sufrágio popular periódico e com imagem estigmatizada (...) por atuarem nos difíceis ambientes político-partidários”. A solução para esse cenário, drasticamente propõe o Conselho, é calar a autoridade pública, que nada mais fez do que o debate livre de ideias sobre assuntos de interesse público, em um espaço público. O procurador Dallagnol, talvez, achou que estivesse em uma democracia madura, e não amadora.

Finalmente, é de se mencionar o seguinte: o Conselho Nacional do Ministério Público, ao punir o procurador, menciona o item VII da Recomendação de Caráter Geral n.º 1, de 3 de novembro de 2016, do mesmo conselho, que disciplina a manifestação pública de membros do parquet sobre questões políticas. De acordo com o dispositivo, são vedados “ataques de cunho pessoal, que possam configurar violação do dever de manter conduta ilibada e de guardar decoro pessoal, direcionados a candidato, a liderança política ou a partido político, com a finalidade de descredenciá-los perante a opinião pública em razão de ideias ou ideologias de que discorde o membro do Ministério Público”. No caso de Dallagnol, não se vislumbra discordância quanto a ideias ou ideologias professadas pelo senador Renan Calheiros. Trata-se simplesmente do dado objetivo de informar a população – diretamente interessada – quanto à candidatura para a presidência do Senado Federal de parlamentar investigado pela prática de atos de corrupção e de lavagem de dinheiro.

Entre proteger a imagem e a honra do parlamentar e chamar a atenção da população para possíveis implicações políticas de uma eleição relevante, pesa a favor de democracias maduras a segunda opção.

Ana Lucia Pretto Pereira é mestre e doutora em Direito Constitucional, com doutorado-sanduíche na Universidade de Harvard e pós-doutorado em Processo Constitucional, e professora de Direito Constitucional na Universidade Católica de Brasília.

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