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| Foto: Oli Scarff/AFP

Em dilema que se torna crônico, a novela da saída do Reino Unido da União Europeia vem sempre a ganhar capítulos inéditos, sem que nada de concreto pareça encaminhar-se. Como ocorreu no sentido inverso, em outros tempos e circunstâncias, quando da adesão às Comunidades Europeias, em 1973, soluções criativas e ousadas parecem não mais despontar, em contundente crise de ideias e de valores, agravada pela liderança frágil de Theresa May.

De Gaulle costumava dizer que a Inglaterra é uma ilha. Mais que à geopolítica, referia-se aos ilhéus, que tão bem conhecia, exilado em Londres de 1940 a 1944, como líder da França livre, protegido no basement da rádio BBC. E era dali que falava para a resistência francesa, enquanto as bombas da Luftwaffe caíam sobre Londres. Após meia década, os aliados por fim venceram os alemães, os franceses venceram os franceses (de Vichy), os italianos imolaram-se sem ajuda externa, e a guerra terminou entre a miséria e o medo. Nesse cenário, enquanto ainda contavam-se os 55 milhões de mortos do conflito, a ideia-força de construir-se um bloco econômico prevaleceu, máxime para que europeus jamais voltassem a pegar em armas contra europeus. Em 1957, eram seis as nações a unirem-se; já em 1973, com a urgência primitiva da sobrevivência, verificou-se a adesão do Reino Unido. Não foi fácil. Primeiro, esperou-se que De Gaulle, contrário aos ingleses, saísse do poder. Depois, foi um prodígio jurídico encontrar uma forma a permitir ao direito inglês, de raízes medievais, atender exigências inéditas da novíssima ordem comunitária.

Não demorou para que o Reino Unido logo se reconstruísse como colosso econômico e comunitário, ainda que ausente, por exceção, da união monetária e da zona do euro

Como regime constitucional não escrito, em que todos os poderes eram outorgados ao Parlamento, era impossível adotar-se soberania compartilhada e supranacionalidade, como exigia o Tratado de Roma. Porém, como não havia escolha, logo perfez-se o impossível. De fato, às vezes, o direito é a mais sublime das quimeras: simplesmente revogou-se o preceito fundamental não escrito, a supremacia do Parlamento, por meio de norma interna, norma escrita e escrita a fórceps, sob o fleumático argumento de que “se o Parlamento tudo podia, poderia inclusive limitar seu próprio poder”, dando carta branca ao direito comunitário e às regras de Bruxelas, quaisquer que fossem, quando fossem, conforme a sofística Seção 2 do European Community Act, de 1972.

Não demorou para que o Reino Unido logo se reconstruísse como colosso econômico e comunitário, ainda que ausente, por exceção, da união monetária e da zona do euro. Agora, depois de dois anos a buscar forma de sair do mercado comum, como se decidiu por questões de pequena política e de desastrada gestão, no referendo de 2016, imponderáveis barreiras conjunturais e estruturais se apresentam. O impasse das fronteiras irlandesas, lancetando feridas mal curadas, e as amarras libra/euro são apenas dois exemplos dentre centenas a fazer ver que, para sair, “caminantes, no hay camino”. E mais: que o artigo 50 do Tratado de Roma, que prevê a retirada, foi concebido pro forma para nunca ser invocado, a contar com a razão e o bom senso das nações civilizadas.

Leia também: A insatisfação com a União Europeia e a fragilidade das utopias (artigo de Cristian Derosa, publicado em 7 de agosto de 2018)

Leia também: Liberdade econômica no Reino Unido e no mundo: em frente e adiante (artigo de Adam Patterson, publicado em 25 de março de 2018)

Como os possíveis três cenários que se apresentam – sair sem acordo, sair com acordo ou ficar e esquecer o Brexit – não são factíveis, conclui-se não haver perspectiva de soluções aceitáveis. Resta por ora esperar, tanto pelos temores do establishment inglês quanto pelo mal ferido orgulho continental, que, como no teatro do absurdo, bem no último ato, Godot possa afinal aparecer.

Jorge Fontoura é professor e advogado.
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