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Na semana passada, três promotores do MP de São Paulo encaminharam um pedido de prisão preventiva contra Lula e alguns outros. Os portais, jornais e redes sociais não falaram de outra coisa, não sem uma certa miopia: o que realmente virou assunto incontornável foi o erro tosco – que não passaria caso houvesse uma revisão na peça – de confundir o nome de dois filósofos alemães, trocando a referência a Friedrich Engels pela menção a Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Diziam os promotores que Marx e Hegel “se envergonhariam da conduta do torneiro mecânico que chegou à Presidência”. Digo que o erro é banal e já me corrijo: o erro é grave, gravíssimo. Isso porque, ao que me parece, o sentimento de Hegel não seria propriamente vergonha, senão de satisfação em contemplar sua tamanha perspicácia na compreensão de como a consciência moral humana pode se comportar – ou se deformar.

O hipócrita se crê investido de um “projeto” maior que legitima pequenos deslizes em nome do grande bem que está por fazer

Em 1821, Hegel publicou uma de suas grandes obras: Princípios de Filosofia do Direito. O livro é denso e consigna seu principal legado no que diz respeito à filosofia moral e política. Em um dos momentos do texto, divididos pelo autor em parágrafos numerados, Hegel propõe-se a analisar a inescapável tensão entre aquilo que, grosso modo, chamaríamos de inclinações e desejos da consciência moral individual e a ética geral, materializada nos costumes e nas instituições sociais.

Como todos sabemos por experiência própria, diversas vezes a nossa vontade subjetiva elabora planos que nem sempre se coadunam com uma visão moral mais geral, encarnada nas demandas e necessidades dos nossos próximos e da sociedade na qual vivemos. Em grande parte das vezes, vemos que uma consciência moralmente reta deve levar aquele contexto em consideração e moderar, matizar ou, ainda, suprimir nossos arroubos. E, assim como nós, Hegel também sabia que isso nem sempre acontece. E é ali, no parágrafo 140, que Hegel prevê o torneiro mecânico. Há aquelas consciências que se recusam a dobrar-se frente à ética universal e que, nas palavras do filósofo, “concebem-se a si mesmas como absolutas”. Mas, ainda segundo o filósofo de Jena, elas podem ir mais longe e afirmar que seus desejos individuais não apenas satisfazem a si mesmas como são “boas para os outros”.

A essa forma particular de mal Hegel chama “hipocrisia”. Esta consiste essencialmente no que o alemão chama de “determinação formal de inveracidade” e a explicação pede a citação direta: “O mal é, em primeiro lugar, representado como bem para os outros e o malfeitor finge em todos os aspectos externos ser bom, consciencioso, piedoso etc. – o que nesse caso é meramente um truque para enganar os outros. Mas, em seguida, a pessoa má pode encontrar no bem que praticou outras vezes, ou em sua piedade, ou em boas razões de qualquer tipo, um meio de justificar para si mesmo o mal que pratica”. O hipócrita é, então, aquele que se crê absolutamente investido de um “plano” ou “projeto” maior que legitima eventuais pequenos deslizes em nome do grande bem que sempre está por fazer. E isso que chamamos de ética é um mero obstáculo à sua individualidade quase divina.

Mas não posso terminar sem uma ressalva aos talentos visionários do alemão. Em outubro de 1806, quando viu Napoleão entrar a cavalo em sua cidade na batalha de Jena-Auerstedt, Hegel escreveu que vira o Espírito do Mundo “concentrando-se em um ponto, que se estende pelo mundo inteiro e o domina”. Se ao menos tivesse vivido 150 anos mais e em São Bernardo, corrigiria esse julgamento precipitado.

Como se vê, as mãos do Espírito Absoluto às vezes escrevem certo por citações tortas.

Gabriel Ferreira é doutor em Filosofia.
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