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(Im)possibilidades entre ter um filho e ser mãe
| Foto: Pixabay

Muito diferente do que ter um filho é ser mãe. O projeto de ter um filho, desvinculado de ser mãe, está pautado nos valores atuais da sociedade da supervalorização do trabalho, das aparências e do consumo, sustentada pelos adultos que não querem crescer e só pensam no seu direito de serem felizes. E a tão desejada felicidade tende a se materializar na imagem da mulher competente, bem arrumada, com carreira de sucesso, polivalente e independente de tudo e de todos. Com estes valores orientadores acaba sendo compatível e até dissimuladamente justificável desejar ter um filho, mas nem sempre desejar ser mãe.

Envolvimentos afetivos podem completar esta imagem da mulher feliz, mas sem necessariamente indicar a experiência de sentido de vida e de constituição de vínculos profundos e permanentes. Quem apenas tem um filho pode criar uma criança órfã de mãe viva, ainda que more sob o mesmo teto. A orfandade afetiva pode se apresentar na forma de violência, abuso e negligência ou, ainda, de seu outro extremo, de superproteção, falta de limites e ditadura infantil. Quero me concentrar nesta segunda configuração, na qual os esforços destinados aos filhos são concentrados em oferecer recompensas materiais, garantir sua felicidade sem frustrações e favorecer formação profissional para que se tornem pessoas de sucesso no mundo do trabalho. Sergio Sinay, pesquisador argentino, sinaliza algumas destas análises no seu livro “Sociedade dos filhos órfãos.

Delegar a educação dos seus filhos para a escola, para espaços sociais ou para cuidadores evidencia um abandono afetivo que muitas vezes pode ser maquiado com recompensas materiais exageradas, formação escolar e profissional de excelência e com experiências sentimentais intensas ou de última geração tecnológica, com frequência esvaziadas de presença, de vida e de propósito. Exemplos disso, fora do contexto da pandemia, são as férias em resorts que promovem o afastamento familiar com seus recreacionistas-babás disponíveis de manhã até a noite. Também exemplificam esta superficialidade afetiva passeios constantes ao shopping (catedral do consumo) empobrecidos de vivência afetiva; ainda, o acesso abusivo às telas pode conectar as crianças ao nada, distraindo da vida.

Esta tentativa de substituição sedutora do afetivo pelo material informa à criança que o valor dela está no que ela tem (carreira, coisas, dinheiro, aparência, curtidas), sem dar a ela a possibilidade de descobrir quem ela é. Não por acaso crianças podem desejar sempre mais produtos, pois coisas não respondem ao que elas realmente precisam. Elas clamam por “outras coisas” que as mercadorias e as experiência de consumo não representam e que o dinheiro não compra.

Ser mãe, no entanto, trata-se de algo muito diferente de ter um filho. Contempla aceitar a confrontação diária de suas incapacidades. Envolve ter um espelho perambulando na sua casa, lembrando-a o tempo todo das suas limitações, mas também da sua existência afetiva e autotranscendente. É amar como nunca amou antes, mas também temer e preocupar-se. Afinal, agora existe um outro na minha existência numa conexão profunda com algo de mim.

Como mãe, vejo quão preciosos, ousados e profundos são os processos de revisão de vida oferecidos em cada contato com os meus filhos. Apontam insistentemente o quão falhos e limitados somos como seres humanos. Também me indicam que há novos caminhos antes não percebidos e que há um novo começo possível a cada dia. O confronto diário com o que de melhor e de mais difícil nossos filhos apresentam (deles e de nós mesmos) nos coloca diante da verdade de que nada controlamos, de que somos birrentos como eles, de nem sempre conseguimos ter as posturas éticas que queremos, nem mesmo com aqueles que moraram um dia dentro da nossa barriga. Nossos filhos nos confrontam com sonhos enterrados, com a alegria esquecida, com nosso orgulho egoísta, com nossa verdadeira identidade e natureza. Eles também podem nos levar a ficar mais inteiros e profundos, com mais consciência da transitoriedade e da dádiva que é esta vida. Também nos colocam em contato com o nosso melhor, acompanhando a consciência de todas estas limitações.

Ser mãe, portanto, remete a um lugar de entrega, de reconhecimento do que podemos fazer e do que não está ao nosso alcance. Também nos dá oportunidade de reconhecer a liberdade e a responsabilidade diante e com aqueles que vieram a este mundo num encontro profundo conosco. Abre caminho para o reconhecimento do perfume da vida em momentos singelos, ainda que eventuais, numa risada descontraída na mesa de jantar ou no aconchego de um cheirinho antes de dormir. Momentos possíveis mesmo diante de crises e pandemia, desde que escolhidos e listados como aquilo que realmente importa.

A famosa culpa de mãe diminui sua intensidade à medida que compreendemos que nossos filhos têm sua própria história e trajetória. Como sujeitos inteiros, eles têm a liberdade de fazer suas escolhas, compatíveis com sua idade e maturidade, e também precisam responder por elas. Mães não são donas do caminho, mas referências de valor do que de fato importa. Nossos esforços podem ser balizados como se tudo dependesse de nós, mães. Nossa paz interior precisa transcender o entendimento e a razão na compreensão de que não temos controle sobre nossa própria existência e nem sobre a trajetória de nossos filhos. Podemos conversar, estar juntos, interceder por eles. Mas o caminhar e as escolhas são deles e as responsabilidades também.

Nesta caminhada há que se cuidar com distrações e seduções que querem tornar adultos e crianças apenas amigos e nada mais, roubando a relação que ensina a honra e a dignidade, inserindo a experiência da liberdade, da responsabilidade e do respeito a si e ao outro. Filhos precisam de adultos que os adotem para serem seus pais, num entrelaçamento entre limites e afetos. Nas (im)possibilidades da parentalidade não há substitutos. O que nós temos feito com este lugar no insubstituível?

Que este tempo desorganizador nos ajude a olhar para o que de fato importa, a reconhecer e expressar gratidão a todas as mulheres que nos adotam e marcam nossas trajetórias, levando-nos além. Você já agradeceu a alguma das mulheres que mostraram o valor que você tem nesta existência?

Lis Soboll, psicóloga, é professora e pesquisadora no Departamento de Psicologia da UFPR e coordenadora do Programa UFPR ConVIDA.

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