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Quase sempre encontro alunos sem o hábito da leitura. Vêm zerados, como digo; alguns são “à prova de leitura”, “blindados”. Lembro-me de um aluno, pouco letrado, que, tocado pela importância dos livros, ligou ao pai, médico no interior, e pediu dinheiro. Queria comprar livros, alguns dos quais lhe indiquei. Fechou-se para ler. E tanto leu que teve uma “prisão de cérebro”, que lhe rendeu uma cefaleia de lascar, mas nunca mais foi o mesmo. Hoje, é um leitor onívoro e um grande médico. Foi tão sofrido seu contato com a leitura que ainda evita passar por sebos e livrarias. A causa de tudo foi tentar ler, de cabo a rabo, Os Lusíadas, a epopeia da viagem de Vasco da Gama às Indias Orientais. O poema tem 8.816 versos decassílabos.

Minha iniciação deu-se aos 11 anos, recém-chegado de Portugal, quando, na Zona Norte de São Paulo, em um lixo doméstico, achei um exemplar ilustrado do Velho Testamento. O volume, encardido, exalava o odor das ovelhas e cabras dos pastores judeus de antes de Cristo. As passagens do Pentateuco (como a história de Absalão, o pecador que foi, em sua fuga, preso pelos longos cabelos em uma árvore) me marcaram muito. Nunca mais parei de ler. Fiquei tal qual o “homem ilustrado” do livro homônimo de Ray Bradbury (autor americano famoso, tido como “o poeta da ficção científica”). As histórias foram se apegando à minha pele sob a forma de tatuagens mágicas, que tinham vida, pois se moviam pelo meu corpo. Elas contavam a história de minha vida. Um cineasta transformou essa obra-prima em um filme maravilhoso. O mesmo aconteceu com outro clássico de Bradbury, Fahrenheit 451. Quase sempre bons livros dão bons filmes.

Manter e aprofundar o amor pela leitura é a essência de nossa cultura

Famílias com livros em casa e que leem na presença dos filhos estão iniciando-os no amor à leitura. Hoje, a prática é rara. Eis mais uma vez a eterna luta entre a palavra escrita e a linguagem iconográfica (tudo para o olho; pouco para o cérebro). É claro que a leitura perde para o mundo dos logotipos e do design (linguagem visual). A leitura no material impresso é indispensável. A palavra é uma janela para descortinar o mundo. Ela é também nosso poder. Por isso, pode-se dizer figuradamente que a palavra é Deus. Uma vez que, como o Altíssimo, no Gênesis deu nome às coisas e Ele é também um nome. Os substantivos ordenaram a realidade. Os verbos deram-lhe o poder da ação. Foi este o início do mundo humano: ab ovo.

Minha neta, desde cedo, ficava perto de mim em meu escritório. Quando foi alfabetizada, começou a folhear os meus livros. Aí pelos 13 aninhos, contei-lhe, por meio de uma paráfrase, o conto “A Cartomante”, de Machado de Assis. No dia seguinte, ela estava com o livro na mão, lendo sofregamente. Nunca mais parou. Hoje é uma leitora dedicada e dotada de várias competências linguísticas. Sua visão de mundo vai se ampliando. Tudo que escrevo, mostro primeiro para ela. Um dia, estava mergulhado, de corpo e alma, em uma obra de ficção científica (então na moda) de Robert Heinlein, Amor Sem Limites. A pequena tomou-o de minhas mãos e leu-o antes de mim. Um dia perguntei à sapequinha se ela sabia a diferença entre um filme e um livro. Vejam!, leitores amigos, o que ela disse: “o filme, vovô, é um livro que anda muito”.

Os livros e a leitura sempre serão um tema crucial. O desenvolvimento da escrita foi a maior conquista da cultura humana. A palavra grafada outorga ao homem o poder mágico de riscar cenas da vida pré-histórica nas paredes das cavernas. Eis os “primeiros livros” e o caminho aberto para a escrita e não para a pintura ou “arte rupestre”.

Manter e aprofundar o amor pela leitura, como veem, é a essência de nossa cultura. Os livros determinam os horizontes da vida em geral e da inserção social em particular. Livros ditam a história das nações. “Livros para todos!”, bradava o poeta Castro Alves:

“Oh! Bendito o que semeia

Livros... livros à mão cheia

E manda o povo pensar!

O livro caindo n’alma

É germe – que faz a palma,

É chuva – que faz o mar.”

(“O livro e a América”)

Carlos Alberto Sanches, especialista em Língua e Literatura Luso-Brasileira, é escritor, professor de Redação, poeta e membro da Academia Paranaense de Letras.
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