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Há traços comuns no sistema penal sempre que se estabelece o modelo autoritário, quer remonte à Inquisição, quer seja analisado o autoritarismo europeu do século passado ou mesmo o recente autoritarismo antiterrorista norte-americano.

As características comuns mais marcantes são a funcionalidade do processo, pela qual não importam sacrifícios a garantias se o objetivo de punir for atingido; a utilização dos meios de formação de opinião para gerar pânico coletivo e, com isso, habilitar poderes excepcionais aos responsáveis por prender, acusar e punir; a alquimia valorativa (o que é normal para os amigos é sinal de perversão nos inimigos); a demonização de quem se propõe a criticar o sistema; o invencionismo judicial para justificar ações abusivas; a atribuição de caráter messiânico aos detentores do poder de punir; o apelo ao patriotismo; e a utilização da simples suspeita como prova.

Não há democracia sem a presença do advogado criminal

No Brasil, chama a atenção a demonização sobre quem se propõe a lançar críticas ao sistema, por mais técnicas e científicas que elas sejam, a ponto de, recentemente, um ministro do STF, por ter dito o óbvio – que condução coercitiva é medida excepcional e deve ocorrer somente se a pessoa frustra a realização de sua oitiva regularmente designada –, ter sofrido uma enxurrada de ataques, alguns de descortesia ímpar, como se não se tratasse de jurista reconhecidamente sério que nada mais fez que se manifestar tecnicamente sobre um tema.

Nesse sentido, a advocacia criminal passou a ser continuamente hostilizada e posta na condição de inimiga primeira da sociedade, o que é preciso desconstruir, pois enfeixa uma perigosa forma de permitir o agigantamento do desejo autoritário sempre latente em parcela da sociedade.

Por exemplo, durante a Inquisição nenhum advogado aceitava defender mulheres acusadas de bruxaria, pois, ato contínuo, seria também acusado de simpatizante do demônio, processado, torturado e executado, de forma que centenas de mulheres inocentes foram mortas, sem ter nem sequer alguém que falasse em seu favor. Situação semelhante ocorreu nos regimes nazifascistas, em que quem se propusesse a defender um acusado de crime contra o Estado imediatamente assumia a condição de suspeito.

É da essência da advocacia criminal carregar a antipatia social contra o acusado, mas é extremamente preocupante ver os agentes do Estado, que devem atuar de forma racionalizante das relações, cederem ao impulso emocional da coletividade e ingressarem em uma espécie de “onda” criminalizante da advocacia criminal, pois com isso se desenha o modelo do total agigantamento do poder punitivo, estruturante dos regimes autoritários, com a retirada da capacidade de contraposição à retórica acusatória, e isto independentemente dos coloridos atualmente muito na moda da sociedade brasileira, direita ou esquerda – pois Mussolini, na direita, não foi menos pernicioso que Stalin na esquerda, ou vice-versa.

Quando da incompreensão social para com a relevante tarefa do advogado criminal há o ingresso na incompreensão pelos agentes do Estado, responsáveis pelo processo criminal, ocorre indisfarçável prevalência da irracionalidade e da transformação dos acusados em objetos, que, independentemente de serem culpados ou inocentes, devem servir, a partir da suspeita que já é tomada como prova suficiente, para provocar satisfação coletiva e aplacar por alguns momentos a sensação de pânico previamente gerada.

Não há democracia sem a presença do advogado criminal, pois é ele que irá falhar às vezes, acertar em outras oportunidades, mas sempre estará a suportar o peso do desejo punitivo do Estado, para que, se condenação houver, que seja dentro da legitimidade democrática, com rigorosa observância ao devido processo legal e certeza de que o acusado pôde apresentar todos os seus argumentos e provas, tendo sua culpa sido demonstrada de forma segura.

Adel El Tasse é procurador federal e professor de Direito Penal.
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