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Some ideas are so stupid that only intellectuals believe them” (George Orwell)

Uma rápida observação sobre o contexto acadêmico atual, especialmente (mas não apenas) no âmbito das “humanidades”, nos mostra a vigência daqueles sujeitos que Thomas Sowell denominou apropriadamente de “intelectuais”, aos quais ele se refere também como “ungidos”. Mas que é um “intelectual ungido” e em que sentido ele é hostil à sabedoria?

Em primeiro lugar, cabe notar que esses sujeitos possuem três características fundamentais: são narcisistas, elitistas e arrogantes. E essas características se inter-relacionar em seu comportamento, como pretendo esclarecer abaixo.

Mas cabe notar inicialmente o seguinte. Eles se restringem ao intelecto, no sentido de sustentarem um pensamento centralizador que se orienta apenas pelas ideias, independentemente dos fatos e, mesmo, das demais pessoas. Eles rejeitam a individualidade e a consequente liberdade individual. Eis a razão de simpatizarem com projetos de engenharia social (especialmente para criarem – vejam como são “virtuosos” - uma “sociedade melhor”). Os intelectuais, os ungidos, nesse sentido, não têm uma visão de sociedade: eles veem a si mesmos – eis seu narcisismo – e impõem essa visão à sociedade. Um exemplo recente? Nos últimos dias, quando da divulgação de alguns vídeos sobre a “greve” de estudantes da Unesp, uma afirmação, feita por uma líder grevista, expressou de forma simples o narcisismo, a arrogância e o elitismo que geralmente caracterizam o “intelectual”. Quando o entrevistador perguntou a ela sobre a maioria dos estudantes que queria entrar nas salas para ter aula, eis sua mensagem: “nós também os representamos. Eles querem aulas, mas nós sabemos o que é melhor para eles. Tiramos as cadeiras das salas e impedimos as aulas por eles também”. Em sua breve resposta, ela simplesmente caracterizou o papel que tem sido desempenhado pelos “intelectuais” (ungidos) na sociedade, especialmente, mas não apenas, a partir do meio acadêmico. E esse não é um exemplo isolado: ele está em todas as universidades públicas. Eu mesmo já testemunhei diversas vezes esse tipo de afirmação, seja por parte de estudantes, seja por parte de professores. Em várias ocasiões repreendi estudantes que tentavam, em minhas aulas, estabelecer uma separação entre “nós” (os ungidos acadêmicos) e “eles” (o senso comum que supostamente não sabe o que quer, que desconhece o que é melhor para si, etc.). Era como se fossemos especiais, moralmente “melhores” e mais capazes do que as pessoas que circulam “lá fora” (comprovando o que escreveu Eric Hoffer, a saber, que os intelectuais precisam se sentir especiais). E me chama a atenção que mesmo estudantes que recém ingressaram na Universidade – especialmente nas ciências sociais e humanas – assumem essa postura “superior”. Eis seu elitismo, seu narcisismo e sua arrogância (em minha opinião não passam de posers de moralismo).

Esses intelectuais veem o coletivo como a menor unidade social. Eles não aceitam a individualidade

Nesse sentido, os intelectuais trabalham com pessoas abstratas, desencarnadas. Não apenas isso, eles focam em grupos (“coletivos”). Como disse Milton Friedman, esses intelectuais veem o coletivo como a menor unidade social. Eles não aceitam a individualidade. Tampouco a liberdade individual, a liberdade de escolha. Afinal, segundo eles, as pessoas podem fazer “escolhas erradas” sem a orientação de um “intelectual”, o qual, aliás, pode ser identificado a partir de alguns aspectos, a saber: intelectuais rejeitam a economia de mercado, são relativistas, têm uma visão romântica de povos primitivos, rejeitam a tradição (a experiência reiterada que demonstrou que há certos valores que valem a pena ser mantidos, por exemplo), promovem uma espécie de eugenia linguística (sob a égide do “politicamente correto”) e, talvez o mais grave, não são imputáveis pelos seus erros.

Assim, são várias as áreas em que eles julgam ter encontrado a resposta para todos os problemas, para a resolução dos males do mundo (e, consequentemente, para a criação de uma “sociedade melhor”). Um de seus alvos preferenciais é a economia de mercado, a qual eles (muito provavelmente por algum tipo de ressentimento) simplesmente odeiam. E dentro dela são vários os seus objetos de ataque. Mas o ponto é que eles promovem aquilo que Roger Kimball denominou de “experimentos contra a realidade”. Eles “brincam” com ideias e as combinam sem recorrer ao juízo, o que frequentemente tem consequências terríveis (e, reitero, eles simplesmente não são imputáveis por essas consequências, diferentemente do que ocorre, por exemplo, com um engenheiro ou médico, que podem perder suas licenças caso seus erros tenham certos resultados). E é nesse ponto que eles, os ungidos, são hostis à sabedoria, a qual envolve não apenas o intelecto, mas também a experiência e o juízo. O ativismo judicial seria também um bom exemplo dessa prática. No âmbito do STF temos 11 indivíduos que frequentemente decidem (dir-se-ia que ocasionalmente “legislam”) em detrimento dos fatos, do que seria, segundo Oliver Wendell Holmes Jr., a função elementar do juiz. Escreveu ele em 1915: Como juiz ... “reconheço que o jogo é jogado de acordo com regras quer eu goste delas ou não”. Mas obviamente não temos um juiz dessa envergadura em nosso judiciário. Assim, temos muitas vezes decisões judiciais engajadas na ideia de se promover uma determinada ideia de “justiça social”, ainda que ela não respeite os fatos, a realidade e o que as pessoas realmente querem. Temos aqui (no caso do ativismo judicial), uma tentativa de moldar a realidade juridicamente (na defesa da implementação do aborto, por exemplo, como vem ocorrendo nesse momento). Eis os “ungidos” em ação, moldando a realidade de acordo com suas ideias (muitas vezes distorcidas) de “justiça”.

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Quanto à economia de mercado, nela ocorre algo similar. Eles ignoram alguns fatos fundamentais. Por exemplo, que a economia de mercado é realmente o modelo econômico mais inclusivo disponível: ele inclui o maior número de vontades individuais. Em uma economia de mercado são as pessoas, individualmente, que escolhem. Aqui não há um centralizador que determina o que devemos comprar, o que devemos escolher, o que devemos ler, escutar, etc. Mas é inerente ao comportamento do intelectual decidir sobre essas coisas, sobre o que devemos escolher (afinal, o intelectual “sabe” o que é melhor para nós). Em minha primeira aula como estudante no curso de filosofia, na qual cheguei com uma camiseta do Metallica, lembro que alguns outros alunos me disseram, com ar de superioridade: “em breve vais deixar de escutar ‘essas coisas’. Vais começar a escutar músicas com preocupações sociais, mais ‘inteligentes’, engajadas”... , etc. Bom, escrevo esse texto, duas décadas depois, escutando... Metallica. O vaticínio deles não se concretizou. Vige aqui minha vontade individual, não aquilo que os “ungidos” entendem como música apropriada a um professor universitário em um curso de filosofia.

Aliás, observem o que ocorre com concessões do Estado mediante leis como a Lei Rouanet. Muito do que ali se fomenta em projetos de “arte” fica restrito a uma “elite”, isto é, aquele que realmente paga não usufrui daquela “obra”, tampouco pagaria por ela se pudesse escolher. Mas uma “elite” decidiu que ele deverá, sim, pagar por ela. Que aquilo que se está a fomentar é a “verdadeira” arte. Por detrás dessa “obra” há um conceito que alguns iniciados conhecem e que dá a ela o status de “bela”. Mas o sujeito comum, o pagador de impostos, simplesmente é incapaz, segundo os ungidos, de valorizar a verdadeira arte, a verdadeira música, etc. Portanto, ele deve ser obrigado a pagar por ela, ainda que sequer possa a ela ter acesso. Essa mentalidade avança para questões ainda mais complexas, como para as questões econômicas em particular. De sua “Liga da Justiça Social” (a Academia ou o Judiciário, por exemplo), os “magníficos” (ungidos) idealizam soluções para problemas econômicos e sociais, como se, por exemplo, ser especialista em comunidades quilombolas e povos indígenas os tornasse, necessariamente, aptos para falar, digamos, sobre o cálculo econômico e sobre os supostos males da economia de mercado e do empreendedorismo. Ora, a questão do cálculo econômico não apenas é complexa, mas encontra na ideia de economia de mercado sua mais eficiente resposta. Ludwig von Mises, em seu ensaio O cálculo econômico sob o socialismo (1920), demonstrou, de forma clara e sucinta, aquilo que apenas os intelectuais ungidos ainda rejeitam: o cálculo econômico é impossível no socialismo. A ideia de uma entidade ou indivíduo central decidindo o que produzir, quanto cobrar, etc., não é apenas uma ideia utópica, mas em sua essência é antieconômica. E isso é algo evidente para a maior parte da população. Todos sabem, empiricamente, qual é o resultado dessa mentalidade: miséria e desorganização. Recorramos ao senso comum e nos coloquemos duas perguntas: De que países as pessoas fogem? Para quais países elas fogem? Milhares de cubanos anualmente arriscam a vida em fuga para os USA. Muitos morrem na travessia. Pergunto: quantos fazem o caminho contrário, saindo do litoral da Flórida para Cuba? E não adianta um intelectual enaltecer o regime socialista cubano: as pessoas “reais” continuarão fazendo aquilo que ele considera uma escolha errada: elas tentarão fugir para os USA, ainda que isso custe suas vidas na arriscada travessia.

Temos muitas vezes decisões judiciais engajadas na ideia de se promover uma determinada ideia de “justiça social”

Algo similar tem ocorrido em nosso território: em torno de 800 venezuelanos entram no Brasil diariamente, ao ponto de ter sido decretada calamidade social no estado de Roraima. Nesse caso, esses venezuelanos julgam que estão em melhores condições como mendigos no Brasil do que trabalhando em seu país. Ora, somente quem ignora a realidade (desses países miseráveis, por exemplo) defende o “planejamento central” e rejeita a economia de mercado. Mas, por mais incrível que possa parecer, a Academia ainda é o reduto daqueles que discursam contra a economia de mercado. Com seu iPhone, com seu iPad (sim: eles usufruem das benesses oriundas do sistema capitalista), os intelectuais a atacam, bem como escrevem e postam nas redes sociais seus elogios a figuras como Stalin e Mao Tsé-tung et al, assim como enaltecem os regimes venezuelano e cubano, ignorando deliberadamente o caos que se instaurou na Rússia quando o governo russo tentou estabelecer mais de 22 milhões de preços, bem como a descrição aterradora do regime soviético feita por Alexander Soljenítsin em sua importante obra Arquipélago Gulag, tal como o real estado de coisas, caótico e miserável (com violações de direitos individuais inclusive), de países como Venezuela e Cuba.

Mas o ponto é que eles rejeitam a liberdade individual. Certamente a liberdade não é um valor absoluto. Como disse John Locke (ao distinguir ‘liberdade’ de ‘licenciosidade’), “a liberdade não é como nos dizem: licença para qualquer um fazer o que bem lhe apraz – porquanto quem estaria livre, se o capricho de qualquer outra pessoa pudesse dominá-lo?” Trata-se da liberdade sob a lei.

Não obstante, talvez seu ataque à liberdade resida em sua tentativa de impor uma ideia irreal de igualdade. Sua concepção de sociedade, obviamente utópica, é a de uma sociedade em que vige a igualdade. Ora, enquanto houver liberdade haverá desigualdade. Coloque fim à liberdade e se poderá, então, promover (sem sucesso e frequentemente com consequências nefastas, cabe notar) a igualdade.

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Um exemplo que comprova esse ponto ocorreu nos últimos anos na Escandinávia, onde um aumento da liberdade gerou o oposto do esperado: gerou escolhas distintas, desigualdade em um sentido positivo, fundada na liberdade de escolha. O experimento realizado naqueles países foi interessante nesse sentido. Os intelectuais tentaram assegurar a igualdade de acesso a certas profissões, igualando o acesso de homens e mulheres a certas profissões. Resultado? Quanto mais livres para escolher, mais as mulheres optaram (livremente) por trabalhar, por exemplo, como enfermeiras (a partir de aspectos inerentes ao seu gênero), enquanto os homens escolheram sobretudo áreas Stem (Science, Technology, Engineering, and Mathematics). Esse é o paradoxo: na Escandinávia, quanto mais as mulheres foram “empoderadas” para escolher, menos elas escolheram as áreas Stem. Ou seja, escolheram exatamente contra o que pretendiam os intelectuais. Ao invés da almejada (e idealizada) igualdade proposta pelos intelectuais que fomentaram esse experimento, a liberdade trouxe desigualdade. Em suma, a realidade e a liberdade solaparam seu experimento. Nesse caso as consequências não foram terríveis, apenas comprovaram o que já era evidente para o senso comum, a saber, que homens e mulheres são diferentes e escolhem (quando são livres para escolher) diferentemente. Algo bem diferente ocorreu com o terrível experimento do psicólogo John Money e sua ideia de que a diferença entre homens e mulheres era uma mera “construção” social e não algo biológico. Sua principal “cobaia”, Bruce Reimer (que se suicidaria em 2004), e sua família tiveram suas vidas destruídas pelo experimento. O intelectual John Money não apenas ocultou evidências, mascarou resultados que comprometiam sua teoria (rejeitando, pois, a realidade): ele jamais se retratou por ter destruído a vida da família Reimer. Tampouco foi responsabilizado pelo seu erro. Esses são exemplos de como funciona a mente dos intelectuais. Desnecessário dizer que eles deliberadamente rejeitam evidências como essas.

Poderíamos abordar outras incursões feitas pelos intelectuais. Mas em todas elas veremos sua arrogância, seu elitismo e seu narcisismo. Não apenas isso, veremos sua deliberada rejeição da realidade.

Carlos Adriano Ferraz, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), é graduado em Filosofia pela UFPEL, mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio doutoral na State University of New York. Foi professor visitante na Universidade Harvard (2010).
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