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Rara convicção entre as precárias certezas da política externa, o princípio da igualdade das nações tem impedido que Estados possam julgar-se uns aos outros. Com isso, macrocriminosos de guerra têm se eximido de punições, protegidos por governos e asseclas. A recente criação e vitalização de tribunais internacionais penais têm trazido boas novas à questão tão melindrosa quanto grave, a envolver as mais altas instâncias de poder.

Para implementar-se a idéia de justiça internacional que previna impunidade acobertada pela geografia e pelo compadrio é necessário que Estados aceitem alguma limitação de suas soberanias, ou autolimitação, para utilizar clássico eufemismo diplomático. Isso se dá pela adesão a compromissos jurídicos internacionais, como é o caso do Tratado de Roma que criou o Tribunal Internacional Penal. Tem-se ainda a forma que dispensa tratados, quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas institui tribunais de forma direta e para guerras específicas, como é o caso de Ruanda e da ex-Iugoslávia.

É fundamental que nas culturas nacionais se conceba um tribunal internacional não como corte estrangeira a ingerir em assuntos internos de nações soberanas. O que se tem em verdade é o prolongamento do poder estatal, com a corte internacional a funcionar como longa manus das justiças nacionais. Até porque tais tribunais possuem natureza consensual e complementar. Vale dizer, só atuam com a aceitação prévia dos Estados signatários e, ainda mais, apenas na ocorrência de paralisia das justiças locais, quando o Estado que deveria julgar deixou de fazê-lo. A falsa idéia de ser a justiça internacional instância acima do poder do velho Estado nacional, bem ao sabor das viúvas ideológicas, enfraquece o real sentido de efetiva e desejável construção de uma ordem pública universal.

Já em tempos de valorização internacional dos direitos humanos, a guerra da Bósnia, entre 1992 e 1995, fez mais de duzentos mil mortos e marcou página trágica nos Bálcãs, em pleno quintal da Europa. Como nas guerras mais primitivas, verificaram-se massacres de população civil e violências insidiosas, perpetradas como políticas de Estado. Agora, com a entrega do líder servo-bósnio Radovan Karadizic pelo seu próprio governo, assiste-se a importante momento de afirmação da justiça global. É certo que o tilintar de fundos comunitários soou forte às autoridades de Belgrado, aspirantes confessas à União Européia. Porém, o resultado é formidável, a permitir o julgamento e a punição exemplar de Karadizik, acusado de barbáries inenarráveis como responsável pela morte de milhares de inocentes civis, dentre os quais mulheres, anciãos e crianças.

A justiça internacional assegura a todos os réus amplo direito de defesa, além das demais garantias do devido processo legal e do Estado Democrático de Direito. O mais procurado genocida do mundo, desaparecido há treze anos, poderá agora exercer sua defesa em Haia, Holanda, onde funciona a corte internacional para a ex-Iugoslávia. Também é de se considerar que o deslocamento geográfico do julgamento para fora dos Bálcãs permitirá maior isenção e tranqüilidade na aplicação da justiça.

A banalização da violência a que temos assistido no Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, a par de nosso distanciamento de questões de natureza mundial, faz com que crimes de guerra e genocidas foragidos pareçam coisas de outro mundo a não dizer-nos respeito. Porém, é de relevância para a sociedade brasileira a construção de consciência acerca do importante papel desempenhado pela justiça internacional penal. Ao impedir a impunidade, ela atua de forma pedagógica, com os olhos voltados ao futuro, a partir das lições trágicas do passado. A história nos ensina que o ovo da serpente, que não escolhe lugar para aninhar-se, encontra guarida ideal na leniência e no descaso dos povos acomodados.

Jorge Fontoura, doutor em Direito, é professor-titular do Instituto Rio Branco, Itamaraty e presidente do Centro de Estudos de Direito Internacional – Cedi/DF

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