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| Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, proposta pelo PSOL para descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação, surpreendeu a comunidade de filósofos e operadores do Direito, que se aprofundam constantemente no conceito de Estado Democrático de Direito – principalmente pelas tergiversações práticas que tem sofrido em nosso país –, visando manter a lucidez no intento hercúleo de sustentar a democracia através do Direito.

De fato, parece uma afronta pensar que um partido político recorra ao Judiciário para discutir uma questão referente a políticas públicas – no caso, em matéria essencial como o direito à vida –, que exigem representatividade e devem ser discutidas de forma madura entre seus iguais, evocando a proteção paternal da Corte Suprema, solicitando, além do mais, o que extravasa a sua competência, pois não foi nomeada nem eleita pelo povo para legislar. Nesse sentido, por exemplo, a Proposta de Emenda Constitucional 181/2015, que visa proteger a vida desde a concepção, percorreu o caminho correto.

Após a concepção, a mulher não ganha mais um órgão – abortar não é extrair um dente –, mas porta um novo ser livre, cuja liberdade não pode ser anulada

Por outro lado, invocar descumprimento de preceito fundamental, atacando um sistema jurídico que vigora há quase 30 anos, a partir de interpretação inconsistente da Constituição, afirmando que esta não acolheu o Código Penal, também demonstra que o pedido da ADPF 442 carece de objeto.

Poderíamos discorrer fartamente sobre a fundamentação da peça, que solicita a descriminalização do aborto voluntário induzido ou consentido nos primeiros três meses da gravidez, excluindo do âmbito de incidência a completude da ação perpetrada tanto pela gestante quanto por quem o provoque, tudo em nome da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade e da paternidade responsável propugnadas pela Constituição (artigos 1º, 3º, 5º, 196 e 226 interpretados à moda do PSOL). O pedido também convoca a legislação internacional de forma incompleta e tergiversada, já que a presença de nossa nação em tratados referentes aos direitos humanos, no que se refere à proteção do nascituro desde a concepção e ao reconhecimento de sua personalidade jurídica, encontra-se em perfeita consonância com a legislação nacional.

Leia também: Direito à vida está em jogo no STF (reportagem especial ADPF 442)

Porém, neste texto, vamos nos ater simplesmente a três aspectos preocupantes. Primeiro, teme-se a arbitrariedade com relação à delimitação do início da vida, sem base científica, ou filosófica – já que, desde a concepção, o ser humano, isto sim, comprovadamente, traz consigo toda a potencialidade da vida de um código genético único –, permitindo a um órgão que o defina, quando o direito à vida se refere, na verdade, a um bem básico que deve ser somente reconhecido e protegido, e não atribuído. Uma ficção jurídica – ajustes que transformam os fatos para adequar-se à teoria –, nesse âmbito, é muito perigosa: como o Direito chega ao certo através do incerto ou duvidoso?

Os argumentos antropológico-filosóficos também são deficientes. Por exemplo no binômio liberdade-responsabilidade, a paternidade responsável deveria refletir sobre as consequências naturais de um ato, assumindo-as. Etimologicamente, a palavra responsabilidade significa ser esposo da coisa. Atribuir ao conceito a possibilidade de matar o filho concebido é paradoxal: o direito de reprodução não é direito de destruição. Por outro lado, a liberdade fundamentada no ser é positiva e relacional. A mãe tem liberdade sobre o próprio corpo para se abrir a uma relação. Após a concepção, a mulher não ganha mais um órgão – abortar não é extrair um dente –, mas porta um novo ser constitutivamente livre, cuja liberdade não pode ser anulada, ainda que dependente da mãe.

Nossas convicções: Defesa da vida desde a concepção

Em termos sociológicos, a ponderação da ADPF 442 também é falha: evoca o colapso do sistema carcerário e, por essa razão, quer aumentar o crime, legalizando o aborto. Evoca a fragilidade das mulheres, principalmente negras e indígenas, o que por si já supõe discriminação, e quer proliferar as relações de desrespeito, da miséria afetiva e dos traumas necessariamente ocasionados pelo ato anti-humano do aborto. Por fim, ainda que sem exaurir o tema, recorre à falácia estatística: mesmo que uma prática seja real, isso não justifica sua legalização. Nesse sentido, não é porque a corrupção se instaurou ostensivamente em nosso país que desejamos descriminá-la.

Mas antes de entrar no mérito da discussão, ainda que tão claro e racional, o Estado Democrático de Direito deve respeitar os próprios requisitos procedimentais, garantindo a segurança jurídica. Já se disse que é mais simples curar uma gripe do que um câncer. Se a forma do Direito – sujeito, objeto, competência, coerência sistêmica, etc. – prevalece, torna-se mais fácil compreender e proceder justamente com relação ao conteúdo. Nesse sentido, apostamos que nossa Corte não cometerá um aborto jurídico ao julgar a questão.

Angela Vidal Gandra Martins, advogada, é doutora em Filosofia do Direito (UFRGS)
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