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| Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

O exercício do poder estatal pressupõe limites e controles que evitem abusos. Afinal, quando se fala em Estado é preciso considerar que ele é representado por um de nós, que abre mão de parcela de sua privacidade e individualidade para atuar em nome e em favor de todos. No entanto, seres humanos com poder tendem a dele abusar quando não são submetidos a mecanismos claros de controle. Por isso, uma legislação que preveja crimes para aqueles que abusem do exercício do poder é sempre bem-vinda, dando concretude à proibição de excesso que é um dos pilares de funcionalidade do Estado.

Sucede que caminha, ao lado da proibição de excesso, uma segunda baliza de orientação do Estado: a proibição de proteção insuficiente, a qual implica em se exigir do Estado posturas ativas para garantir aos cidadãos o direito à vida, à propriedade e à segurança, nos termos do artigo 5.º da Constituição. Quem atua neste sentido são as instâncias formais de controle da criminalidade: polícias, Ministério Público e Judiciário. Assim, é no equilíbrio entre estas duas funcionalidades – proibição de excesso e proibição de proteção insuficiente – que a democracia se concretiza em sua plenitude.

o projeto de lei sobre abuso de autoridade praticamente anula a proibição de proteção insuficiente

Dizendo-se preocupado em ampliar o regramento alusivo à proibição de excessos, o senador Renan Calheiros propôs o Projeto de Lei 280/2016 para reformular a matéria dos crimes de abuso de autoridade, hoje regulada na Lei 4.898/1965. No entanto, o projeto provoca um efeito reflexo: praticamente anula a proibição de proteção insuficiente. Nos termos das novas figuras penais propostas, os integrantes da polícia, do Ministério Público e da magistratura correm sérios riscos de serem responsabilizados criminalmente apenas por adotar posição interpretativa da lei, dos fatos e da prova que possa ser modificada por novas interpretações dos tribunais superiores. Isso engessa a iniciativa da polícia de investigar, do Ministério Público de acusar, e do Judiciário de julgar.

Aparentemente atento à questão, o senador Roberto Requião apresentou um substitutivo que melhora o projeto, mas não elimina o problema. Seu relatório informa acolher a sugestão de excludente de criminalidade, mas há um detalhe que torna difícil a compreensão da regra. Se a primeira parte do sugerido parágrafo único do artigo 1.º está adequada, ao considerar que “não constitui crime de abuso de autoridade o ato amparado em interpretação, precedente ou jurisprudência divergentes, bem assim o praticado de acordo com avaliação aceitável e razoável de fatos e circunstâncias determinantes”, a observação final revela um paradoxo ao dizer que estas excludentes só são válidas se “em qualquer caso, não contrariarem a literalidade desta lei”. Ou seja: a parte final praticamente anula a precedente. A confusa redação funde afirmações mutuamente opostas e excludentes num mesmo enunciado e, assim, remete a questão novamente ao campo da criminalização da interpretação.

Querendo punir falsos “excessos”, anula-se a proibição de proteção insuficiente e se engessam as instâncias formais de controle da criminalidade. Nessa altura, torna-se desnecessário nominar quem se beneficiará caso se insista nessa possibilidade de punir a mera divergência de interpretação. É preciso avançar para um modelo equilibrado.

Rodrigo Régnier Chemim Guimarães, doutor em Direito do Estado e procurador de Justiça, é professor de Direito Processual Penal e coordenador do curso de pós-graduação em Direito Penal do Unicuritiba.
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