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Teletrabalho. Imagem ilustrativa.
Teletrabalho. Imagem ilustrativa.| Foto: Pixabay

Nesses tempos de isolamento social circulou na internet um vídeo de uma teleconferência com uma dúzia de pessoas engajadas no que parece ser um debate interessantíssimo. Uma das participantes começa a andar, para diante de um vaso sanitário, coloca o telefone no chão, abaixa as calças e se senta, sob os incrédulos olhos de todos os outros participantes do debate, cujas reações variam entre o choque e o constrangimento. É a mesma reação das pessoas que recebem e assistem ao vídeo pelas redes sociais. Em poucos segundos a referida senhora se apercebe da gafe, e tenta desesperadamente alcançar o telefone para mudar a direção da câmera.

Como isso chegou a ocorrer? Algumas elucubrações: ela achou que havia desligado a câmera, mas não o fez; ela efetivamente desligou a câmera, mas por defeito o equipamento não respondeu; ou ela estava tão distraída que realmente não se atentou para o fato de que estava indo ao banheiro com transmissão ao vivo para os debatedores.

Em paralelo, o LinkedIn está salpicado de artigos e vídeos profetizando sobre um dos efeitos da crise mundial de saúde: uma profunda alteração no modo de ser das relações pessoais, sociais e econômicas. A tese central envolve pelo menos uma, dentre muitas outras, das premissas a seguir: 1. as pessoas querem ou precisam trabalhar de casa; 2. as empresas não precisam gastar com prédios e infraestrutura; 3. a redução da circulação de pessoas atua favoravelmente na redução dos problemas de trânsito e poluição etc.

Todas essas proposições são resumidas em promessas de um “mundo melhor”: a vida virtual vai exsurgir da crise mundial de saúde como “revelação” sobre as vantagens da tecnologia, e ganhos pessoais, corporativos e sociais são incalculáveis. Reconheço a possibilidade da tese. Mas também reconheço a possibilidade da explosão do megavulcão localizado na região do Parque de Yellowstone, nos Estados Unidos, que tem potencial para extinguir 80% da vida no planeta – assisti ao documentário na tevê, simplesmente aterrador.

Quero dizer com isso que reconhecer a possibilidade de ocorrência de alguma coisa não importa em atestar sua probabilidade estatística. Aliás, em termos de probabilidade, o documentário explica que a erupção do megavulcão está atrasada (uma questão relativa aos períodos geológicos), significando que pode ocorrer a qualquer momento.

Voltando ao assunto: de fato, há alguma razoabilidade em acreditar que as empresas vão querer economizar bilhões de dólares com infraestrutura (aluguel de imóveis, água, luz, telefone, segurança, dentre outras vantagens) e investir no trabalho remoto. Entretanto, como todos os utópicos infantilizados, os tecnoteens desconsideram todos os riscos das soluções que defendem, na certeza absoluta das ideias que norteiam suas gloriosas aspirações. Ficam tão impressionados com as maravilhas da tecnologia que ignoram e subestimam os custos agregados.

Ignoram, por exemplo, os possíveis efeitos de longo prazo na manutenção das respectivas culturas corporativas. Afinal, o que faz uma empresa? É apenas um prédio e uma logomarca, ou um conjunto (talvez) indissociável de fatores, inclusive a proximidade física dos humanos envolvidos? E, para além do sistema econômico, será que as relações pessoais de trabalho têm alguma importância no arranjo social humano? Será possível pensar que, talvez, o distanciamento social apresente reflexos psicológicos indesejáveis? No médio e longo prazo, o que poderia significar uma “humanidade em home office”? Será que não vale a pena refletir sobre possíveis benefícios de forma adulta, também debatendo sobre os possíveis custos e riscos?

É como se a pedagogia nunca tivesse explicado a importância do relacionamento físico na formação dos jovens. Ou como se a zoologia e a psicologia não tivessem explicado a importância da comunicação não verbal para os símios em geral, inclusive humanos. É como se uma percepção mais básica da humanidade não houvesse ensinado sobre a importância de um aperto de mão, um tapa no ombro, ou mesmo um abraço.

A questão, então, envolve um debate sobre como desenvolver as habilidades sociais de convivência pessoal em um mundo que está empolgado com a ideia de restringir a convivência pessoal. De fato, há um problema sobre as habilidades sociais de convivência que já está bem mapeado (o conhecido tema da “ultrapolarização política” nas redes sociais): a comunicação virtual não tem o condão de representar ou traduzir a complexidade da comunicação humana. Nesse contexto de muita informação mal comunicada, a ausência da interação física impede a criação daquele vínculo de respeito mútuo que constrange (no bom sentido) e limita o discurso de ódio. Dito de forma mais simples: na conversa virtual, é mais fácil gritar com o teclado que conversar de forma civilizada com a pessoa que manipula o outro teclado. É por isso, dentre diversas outras possíveis explicações, que pessoas absolutamente afáveis na vida real expressam atrocidades nas redes sociais.

Assim, não é necessário debater se a tecnologia irá apresentar reflexos negativos na convivência, pois tais efeitos negativos já são percebidos. O tema é debater a medida dos reflexos negativos e, principalmente, refletir sobre modelos de controle e mitigação dos problemas verificados.

Na verdade, seres humanos não convivem pessoalmente apenas por que “precisam”, como elemento de um sistema econômico, mas convivem pessoalmente porque esse contato é parte indissociável daquilo que chamam de humanidade. É evidente que isso pode mudar. Aliás, no estado da arte tecnológico, é provável que mude. Entretanto, como tudo na vida, há trade-offs que devem ser considerados. Ir ao banheiro ao vivo diante dos debatedores de uma videoconferência é apenas um exemplo prosaico.

Aliás, este é apenas um entre tantos outros vídeos: há o julgamento telepresencial em que uma das participantes passa em frente à câmera vestindo apenas o sutiã e a saia; em outro julgamento, um dos juízes profere um palavrão; num terceiro, um dos participantes está dormindo. Parece confirmar a tese de que há trade-offs que devem ser considerados, e de que o progresso – conceituado como mudança – é condição necessária, mas não é condição suficiente.

Seria bom ouvir pessoas falando sobre benefícios e economias – juntamente com os alertas sobre os riscos e os custos. Poucas coisas são mais tediosas que ouvir adolescentes de todas as idades encantados com a tecnologia e suas promessas de salvação. Como se a tecnologia fosse nos redimir, pelo conhecimento, daquele erro do primeiro humano que foi expulso do Paraíso porque ousou tentar aprender e conhecer, um tipo de vingança contra um Pai que nos forçou para fora de sua casa, rumo ao suor e ao trabalho.

De toda sorte, não estou pregando contra o home office (é a minha realidade profissional), muito menos contra a tecnologia, até mesmo porque sou apaixonado pelos confortos da vida contemporânea. Inclusive, creio que a tecnologia é melhor expressada pela comida na geladeira (isso, sim, uma megarrevolução social) que pelo tecladinho interativo do meu telefone. O emoticon da vida real é poder medicar seu filho, em vez de vê-lo morrer por uma coisa tão banal quanto uma infecção decorrente de um arranhão em um prego enferrujado.

Assim, não falo a partir de uma posição da filosofia romântica que sonha com as virtudes de um passado supostamente mais puro. Simplesmente acho necessário convocar os adultos, conceituados como aqueles que compreendem que custos e riscos não são opcionais, para sentar à mesa na qual está se desenvolvendo o debate sobre tecnologia, economia, futuro e humanidade.

Assis José Couto do Nascimento é advogado, especialista em Direito Público e mestre em Direito Constitucional.

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