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Lockdown: limitar o direito de ir e vir por decreto é inconstitucional
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No início do mês de maio, seja cumprindo determinação judicial, seja agindo por sponte propria, alguns entes subnacionais, no afã de adotarem medidas sanitárias administrativas para o enfrentamento da pandemia da Covid-19, instituíram lockdowns que, na figura de um “isolamento social rígido”, limitaram o direito de ir e vir da população.

O primeiro foi o estado do Maranhão, que, em atendimento à decisão proferida nos autos da Ação Civil Pública 0813507-41.2020.8.10.0001, limitou, conforme a dicção do inciso VIII do artigo 3.º do Decreto Estadual 35.7849, de 3 de maio de 2020, a entrada e a saída dos municípios localizados na Ilha do Maranhão (São Luís, São José de Ribamar, Paço do Lumiar e Raposa) sob pena da aplicação das sanções previstas no artigo 6.º do mesmo decreto.

No dia 5 de maio, os estados do Ceará e do Pará, e o município de Fortaleza editaram respectivamente os decretos 33.574, 729 e 14.663. Os decretos, tanto o cearense como o alencarino, têm redação idêntica, e em seu artigo 5.º estabelecem, da zero hora de 8 de maio às 23:59 de 20 de maio, um “dever geral de permanência domiciliar no município de Fortaleza” que importa na vedação à circulação de pessoas em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, ressalvados os casos de extrema necessidade constantes de um rol declinado pela norma; a exemplo do decreto maranhense, os decretos 33.574 e 14.663 também estabelecem punições, dispondo expressamente em seu artigo 14 que o descumprimento das medidas sanitárias sujeitará o infrator à responsabilização cível, administrativa e criminal, sem prejuízo do uso da força policial, se necessário, para prevenir ou fazer cessar a infração.

Por fim, no Pará, o Decreto Estadual 729/2020 proibiu, em seu artigo 2.º, a circulação de pessoas nos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba, Benevides, Castanhal, Santa Izabel do Pará, Santa Bárbara do Pará, Breves, Vigia e Santo Antônio do Tauá, salvo por motivo de força maior justificada nos casos elencados pela norma. As pessoas que eventualmente descumprirem o decreto paraense estão sujeitas, por força do inciso III do seu artigo 6.º, à aplicação de multa diária no valor de R$ 150 a ser duplicada por cada reincidência.

Para analisar as limitações ao direito de ir e vir promovidas pelos entes subnacionais que adotaram o lockdown como medida de enfrentamento ao coronavírus, é preciso partir de algumas premissas que, de fato, são incontestáveis: 1. a saúde, nos termos dos artigo 196 da Constituição Federal, é direito de todos e dever do Estado; 2. em razão do poder de polícia, a administração pública pode condicionar e restringir o exercício de liberdades individuais e o uso, gozo e disposição da propriedade, com vistas a ajustá-los aos interesses coletivos e ao bem-estar social da comunidade; 3. sobretudo com base no inciso II do artigo 23 da Constituição, o STF definiu, nas ADIs 6.341 e 6.343, que: i. tanto União quanto estados e municípios têm competência para definir medidas de combate à disseminação do coronavírus, desde que dentro das atribuições e limites de cada um pela Constituição Federal; e ii. estados e municípios devem se orientar por recomendações técnicas; por fim, 4. não existe direito no ordenamento jurídico que seja absoluto e, portanto, impassível de sofrer limitações.

Postas as premissas acima e tomando apenas elas como base, seria incontestável a validade dos lockdowns decretados no Maranhão, no Ceará, no Pará e em Fortaleza.

Entretanto, mesmo que para atender a tão nobre e relevante dever de cuidar da saúde (um incontestável interesse público que sobrepuja o interesse particular), o exercício por parte da administração pública (incluindo a dos entes subnacionais) tanto do poder de polícia (para aplicação de medidas coercitivas e restritivas) como do poder regulamentar (para edição de decretos regulamentares) encontra limites na Constituição Federal.

A liberdade de locomoção que garante o direito de ir e vir está estabelecida no inciso XV do artigo 5.º da Constituição, que estabelece que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. É preciso, de imediato, atentar para esse trecho em particular do inciso XV do artigo 5.º: “nos termos da lei” – voltaremos a ele mais à frente.

Pois bem, a própria Constituição excepcionaliza a liberdade de locomoção frente à decretação de prisão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de juiz (artigo 5.º, LXI) e durante vigência de estado de sítio, para determinar a permanência da população em determinada localidade (artigo 139, I), mas não trata da possibilidade de uma restrição de tal direito por razões de saúde pública.

E aqui voltemos ao inciso XV do artigo 5.º da Constituição e a expressão “nos termos da lei”. Ora, a Lei 13.979/2020, a lei nacional que regulamenta – dentre outras medidas de enfrentamento ao coronavírus (como, por exemplo, as compras públicas) – as medidas sanitárias aplicáveis em sede de poder de polícia, não prevê a possibilidade de decretação de lockdown; ela disciplina apenas o isolamento e a quarentena – havendo, todavia, em que pese a minha discordância, quem enxergue na menção à “restrição de atividades” contida no inciso II do artigo 2.º da Lei 13.979/2020 o autorizativo legal exigido pelo inciso XV do artigo 5.º da Constituição.

Não havendo previsão da aplicação de lockdown disciplinada em lei formal (a qual se entenda como a norma que é votada pelos representantes eleitos para compor o parlamento dentro de um processo legislativo), não se pode adotar tal medida para restringir a liberdade de locomoção da população por meio de um mero decreto, haja vista que, nos termos dos incisos IV e VI do artigo 84 da Constituição Federal, decretos não inovam na ordem jurídica e, portanto, não podem criar ou restringir direitos.

Aldem Johnston Barbosa Araújo é advogado especialista em Direito Público.

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