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No diálogo Górgias, escrito por Platão, é possível encontrar uma anedota que passa quase despercebida aos olhos do leitor apressado. Cálicles e Sócrates, personagens do diálogo, discutem a respeito da importância da filosofia, quando o primeiro aconselha Sócrates a abandonar a atividade filosófica, alegando que ela não oferece nada de útil à sociedade: não constrói casas, não gera riquezas, não salva vidas. “Se prosseguir filosofando até uma idade avançada, forçosamente ficará ignorando tudo o que realmente importa conhecer [...] é procedimento ridículo, indigno de homens e merecedor de açoites. É precisamente isso que se dá comigo com relação aos que se dedicam à filosofia”, argumenta ele.

Na linguagem habermasiana, Cálicles representa os ideais tecnocratas daqueles que desejam silenciar a atividade filosófica em favor de uma agenda mais positivista, alimentada pela lógica capitalista que transforma saberes em produtos, disponibilizando-os para aquisição no mercado. Para eles, os homens deveriam se dedicar a atividades “mais importantes”, aquelas que podem, de forma pragmática, contribuir com o tão desejado desenvolvimento social, fomentando o progresso da humanidade. Sócrates, o interlocutor que não se deixa ludibriar pela argumentação astuta e revestida de boas intenções, explica para o amigo que deixar de filosofar é simplesmente impossível, porque é impossível deixar de se espantar com a existência. A filosofia nasce e se renova no embate do homem frente ao mundo, e isso não se pode silenciar: matar a filosofia significa matar o próprio homem.

A nova ordem econômica é enxugar gastos, e a Filosofia não está a salvo dessa exigência

Resgatando uma moldura típica do regime militar, no Brasil tramitam propostas legislativas que pretendem excluir a oferta de cursos da área de Ciências Humanas nas universidades federais. Seria essa a forma do progresso? No âmbito federal, em nome de um projeto de modernização, a reforma do ensino médio eliminou as disciplinas de Filosofia e de Sociologia da grade curricular obrigatória; agora elas são optativas. Lamentavelmente, chamam isso de “autonomia”.

Francisco Razzo: Contra um certo estereótipo (18 de abril de 2018)

Leia também: O Fim das Humanidades (artigo de Gabriel Ferreira, publicado em 6 de maio de 2016)

A nova ordem econômica é enxugar gastos, e a Filosofia não está a salvo dessa exigência. Como se fosse possível formar bons cidadãos e cientistas competentes sem recorrer aos pressupostos filosóficos que servem de suporte fundamental para a própria ciência. A biologia e a medicina precisam da filosofia para problematizar o mistério da vida; o mesmo se passa com a física e a química, que necessitam da filosofia para levantar questões acerca da origem da matéria. A filosofia é indispensável para a formação intelectual alicerçada em valores republicanos; acreditar no contrário seria um erro absurdo. Fazendo coro às sábias palavras de Cassirer: “A filosofia não se separa da ciência natural, da história, da ciência do direito e da política, mas, de certo modo, constitui para todas elas a respiração vivificante, a única atmosfera na qual podem existir e atuar”.

Ainda que as articulações políticas e as convulsões súbitas pareçam ameaçar a tranquilidade da reflexão filosófica, elas são, na verdade, estertores de uma realidade que está prestes a morrer, e que, por reconhecer essa inevitável fatalidade, revoltam-se mais ferozmente contra a filosofia. Por tudo isso, mais do que nunca: Sapere aude!

Edimar Brígido é doutor em Filosofia.
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