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| Foto: Fabio Abreu/

Em tempos pré-internet as aflições paternas e os cuidados para com os filhos eram mais palpáveis e concretos: não fale com estranhos, não entre em uma rua deserta, evite entrar em uma praça à noite. Era uma época em que o ambiente doméstico oferecia menos riscos e se tornava referência de segurança.

Com o avanço das tecnologias houve uma introdução de equipamentos eletrônicos que se moldaram perfeitamente à nossa rotina, sem que percebêssemos os riscos que eles poderiam oferecer: hoje a exposição ao perigo se dá no sofá da sala, no quarto do filho mais novo.

No início da internet, assim como na popularização da televisão, orientava-se que estes aparelhos ficassem na sala da família, perto dos olhos de vários adultos que pudessem orientar os mais novos. Porém, há alguns anos, os aparelhos diminuíram de tamanho e a conexão à internet se tornou possível sem fio, podendo ocorrer em qualquer local.

Leis sobre os limites da publicidade direcionada às crianças tiveram função protetiva importante, mas também foram, de certa forma, responsáveis pela redução da oferta de programação infantil na tevê aberta e, por isso, a internet e a possibilidade de acesso a qualquer personagem e programas infantis através do YouTube ocupou parte desse espaço.

Terceirizar o cuidado e segurança dos filhos a essas plataformas é, no mínimo, ingênuo demais

O próprio YouTube, assim como outras plataformas de streaming, almejam que o usuário dedique muito tempo online e dessa forma um algoritmo possa sugerir novos conteúdos – o algoritmo define qual conteúdo exibirá em seguida através de dados que divulgamos e outros que não sabemos como a plataforma adquire, gerando uma sequência de vídeos que chegam a nossa tela.

Dentro deste cenário, tive contato com relatos de pais preocupados com “vídeos estranhos” no YouTube desde 2018, com conteúdos inadequados chegando a crianças através da plataforma. Ouvi, por exemplo, a história de um paciente que por vezes misturava fantasia e realidade – e só tive certeza da veracidade de seus relatos quando pude testemunhar o Sonic do mal e o Bob Esponja que esquartejava os amigos em um vídeo online.

Voltando ao episódio acima, não me surpreendeu o relato da boneca Momo aparecendo em meio a desenhos e vídeos de músicas para bebês – para aqueles que não estão familiarizados com a imagem do Momo, fica difícil descrever a sensação bizarra que o personagem provoca. Basicamente, trata-se de uma figura feminina de olhos exageradamente abertos e boca semelhante a um bico. O tom de pele e expressão é típico de filmes de terror com potencial para causar medo em crianças e adolescentes, sobretudo pelas sensações de flashback que pode evocar – temos ainda o agravante de a figura estar aparecendo em vídeos direcionado principalmente a crianças em idade pré-escolar, e de forma súbita, dificultando a percepção dos pais.

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Algumas dessas versões, aliás, “ensinavam” a criança a se cortar, “matar os pais” e não contar para ninguém, além de sugerir que o Momo apareceria em momentos em que a criança estaria sozinha para assombrá-la. A orientação neste momento não poderia ser diferente além do maior cuidado nas redes sociais e internet. É importante também abordar o papel da supervisão paterna em um mundo cada vez mais dinâmico, em que pais também estão sujeitos a estarem conectados 24 horas por dia. É necessário ainda discutir o exemplo que os adultos são para as crianças no uso da tecnologia.

Temos de atualizar o discurso dos perigos da rua e dos estranhos: eles não estão mais a nossa espera apenas à noite ou em um lugar ermo. O uso dos aparelhos eletrônicos é um caminho sem volta, mas sua utilização na infância deve ser monitorada.

Terceirizar o cuidado e segurança dos filhos a essas plataformas é, no mínimo, ingênuo demais. Devemos, é claro, cobrar transparência e restrição, porém são plataformas compartilhadas por qualquer usuário com acesso à internet.

Há regras e meios de denunciar vídeos impróprios, assim como uma versão restrita, mais adequada às crianças, com o intuito de diminuir o risco de acesso a conteúdos inadequados. Mesmo assim, diante da avalanche de dados compartilhados, não há certeza da segurança dos pequenos: o acesso à internet se tornou individual, mas os pais podem resgatar o hábito de assistir a conteúdos em conjunto com os filhos como se houvesse uma tela única em casa. Em todo o caso, a presença é o maior cuidado.

Cristiane T. Geyer é médica psiquiatra da Infância e Adolescência, mestre em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e preceptora da Residência Médica do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
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