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Muçulmana e residente em Baltimore, adotei a cidadania norte-americana por medo
| Foto: Pixabay

Entrei na agência do Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA aqui de Baltimore em uma tarde abafada, há duas semanas. Depois de passar pela segurança, entrei em uma sala de espera que se parecia com aquelas do Departamento de Trânsito. A maioria ali se parecia comigo no sentido de ser negra e de outras partes do mundo.

Havia uma tevê montada na parede, sintonizada no canal de reality shows, mas com o volume tão baixo que mal se ouvia um zumbido. Todos sussurravam. Uma garotinha de 2 ou 3 anos era a única que desafiava o silêncio, em sua tentativa de sussurrar ou gritar a mãe. Talvez estivesse com fome, ou com a fralda molhada, ou com sono. Eu já estava nervosa só por estar ali.

O casal à minha frente repassava os papéis em uma pasta, checando de novo para ver se estava tudo em ordem: certidões de nascimento, de casamento, documentos de viagem, cada carta recebida do governo ao longo do processo de requerimento. A minha tinha uma pilha de uns cinco centímetros de altura, que eu começara a reunir 881 dias antes, logo depois de decretada a primeira "proibição de viagem". Era janeiro de 2017 e eu estava visitando familiares no Canadá, onde nasci, deixando meu marido, nascido nos Estados Unidos, e nossos dois filhos em Baltimore.

Como canadense de posse do green card, eu não teria sido afetada pela medida, mas, como muçulmana nascida de pais paquistaneses, achava perfeitamente possível que, em meio ao caos daquele momento, um agente exagerado decidisse que eu era um indivíduo duvidoso e me impedisse de voltar para minha família. Durante os dias que se seguiram à promulgação, enquanto a Justiça discutia a legalidade da questão, a proibição foi temporariamente suspensa – e voltei para casa, dando entrada imediatamente no pedido de cidadania.

Dezesseis anos antes, eu saíra do Canadá para estudar no MIT, naquela que eu achava ser uma oportunidade breve, mas sem precedentes, de reforçar minha educação; só não esperava me apaixonar por um cidadão da Virgínia, sagaz e gentil. Minha estada temporária se transformou em uma vida plena ao lado dele e dos nossos dois filhos, e em uma carreira sólida como neurocientista na Universidade Johns Hopkins. Jamais pensara em pedir a cidadania norte-americana; minha intenção era fazer o que muitos canadenses que moram aqui fazem: renovar o green card a cada década e manter a nacionalidade canadense.

Sou cidadã, sim, mas também sou uma muçulmana de pele escura que se parece com um dos membros do "esquadrão" que Trump mandou voltar para onde veio

Só que, depois da proibição de viagem, esse plano já não me parecia tão seguro. Temia acordar um dia e descobrir que minha situação legal tinha sido revogada e eu, muçulmana e de pele escura, me veria separada da minha família, dos amigos e da vida tão norte-americana que tenho a sorte de ter. Esse pavor me fez mudar de ideia e só cresceu nos 881 dias que meu requerimento levou para ser processado pelo sistema. Agora, sentada na sala de espera, minha apreensão está no limite máximo.

Na noite anterior, Trump tinha mandado quatro deputadas de cor "voltarem para os lugares infestados de crimes de onde tinham saído"; dias antes, insultara Baltimore, descrevendo-a como "uma bagunça nojenta e infestada de ratos". Fico imaginando quantos funcionários da imigração daqui e de outras cidades do país concordam com essas palavras e se sentiram empoderados por elas. Espero que não seja o caso do agente com quem eu tiver de falar.

Chamaram meu nome e fui levada por um corredor à sala de um negro de terno e fala mansa sentado a uma escrivaninha com um computador cuja tela estava de costas para mim. Ele começou a fazer perguntas sobre as informações básicas que constavam do meu formulário, em um diálogo sério com a intenção de resumir minha vida inteira em menos de 15 minutos. A seguir veio o teste, com dez perguntas selecionadas entre as 100 que são usadas para esse fim. Ele começou: "Qual o oceano que banha a Costa Oeste dos EUA? Quantos membros votantes há no Congresso? Eisenhower foi general em que guerra?" Como eu tinha estudado e me preparado bem, passei no teste.

Dois dias depois, voltei à mesma sala de espera para a cerimônia de naturalização. O funcionário responsável por ela era um porto-riquenho que nos recebeu dizendo: "Parabéns! Hoje vocês se tornarão cidadãos norte-americanos! O mais difícil já passou. Agora, merecem uma salva de palmas!" Ele transbordava um entusiasmo contagiante. Eu me deixei levar, aplaudindo o tempo todo. Éramos 45, e fomos nos levantando conforme chamavam nossos países de origem – 27 no total. Então, depois de cantarmos o hino e recitarmos o Juramento à Bandeira, fomos declarados cidadãos.

Foi surreal, quase voyeurístico. Parecia que eu estava observando a cena de longe. O funcionário se adiantou na direção do telão à nossa frente, e trocou a imagem estática da bandeira por um clipe do presidente Trump de terno azul e gravata listrada. Ali ele nos dava as boas-vindas "à família norte-americana", dizendo: "Não importa de onde vieram, ou em que acreditam, este país agora é seu. Têm direitos plenos e os deveres inerentes à nova cidadania – algo muito, muito especial".

Só que eu não me sentia especial; pelo menos não ali. Só me via complicada, envenenada, contraditória. Esperava que a nova cidadania me desse uma sensação inegável de segurança, um direito inquestionável de viver nos EUA e participar de sua democracia. Não deu. Sou cidadã, sim, mas também sou uma muçulmana de pele escura que se parece com um dos membros do "esquadrão" que Trump mandou voltar para onde veio. E vivo em Baltimore, um lugar a que o presidente se refere como "perigoso e imundo".

Olhando os novos cidadãos à minha volta, radiantes, fiquei imaginando o esforço físico que tiveram de fazer, como foi árduo o caminho para finalmente chegarem até ali. E me senti meio culpada, pois não tive de me esforçar demais, nem percorrer longas distâncias. Mais do que qualquer outra coisa, porém, eu me ressenti com as circunstâncias da semana que marcou nossa conquista e diluiu um pouco minha noção de cidadania.

Quando me tornei oficialmente norte-americana, uma amiga, muito gentil, me mandou uma mensagem que dizia: "Bem-vinda à luta :) Que este país seja para você o que pretende ser para todos, um espaço de liberdade e oportunidade". Talvez seja necessário mais do que apenas boas intenções para que isso continue a ser verdade.

Naquela tarde abafada em que fiz o teste, torci para que uma das perguntas fosse: "Cite duas maneiras pelas quais os norte-americanos podem participar de sua democracia". Segundo minha apostila, há exatamente dez respostas aceitáveis para essa questão, inclusive "entrar para um partido político", "apoiar ou se opor publicamente a um tema ou legislação", "votar" e "escrever para um jornal".

É por isso que aqui estou, participando da festa da democracia norte-americana.

Natasha Hussain é a diretora científica do Instituto Kavli de Sistemas de Neurociência da Universidade Johns Hopkins.

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