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Ilustração: Fábio Abreu
Ilustração: Fábio Abreu| Foto:

São três da tarde, estou atendendo há algumas horas e já sinto a concentração começar a sumir. Como preciso ficar alerta para as próximas consultas, pego alguma coisa para comer e tomo um café.

Como clínico geral, esse vem sendo meu ritual há vinte anos – e agora um novo estudo confirma que o meu temido “apagão das três” não só é real como pode afetar a saúde dos meus pacientes.

Segundo a análise, publicada pelo JAMA Network Open, os médicos pediram menos mamografias e rastreamentos de câncer de cólon nas últimas horas de expediente, em relação às primeiras horas da manhã. Todos os pacientes deveriam fazer o procedimento, mas o volume de pedidos foi mais alto nas consultas por volta das oito. Ao fim da tarde, chegava a ser de 10% a 15% mais baixo. Os prováveis motivos? Atrasos e fadiga decisória.

Na clínica geral, o médico se atrasa porque a carga de trabalho é insana. Para fazer tudo o que deveria fazer em um dia normal, o clínico geral teria de passar de 11 a 18 horas lidando com casos preventivos e crônicos, sem contar os novos problemas. Para cada hora com o paciente, usa de uma a duas para atualizar os registros eletrônicos. Para tentar encaixar o máximo possível no horário, acaba se sentindo um pouco como o Coelho Branco de Lewis Carroll – sempre atrasado, de olho no relógio, preocupado, correndo de um paciente para o próximo.

A fadiga decisória é o desgaste progressivo do autocontrole conforme se é obrigado a fazer opções consecutivas

A fadiga decisória, também mencionada na conclusão do estudo, é o desgaste progressivo do autocontrole conforme se é obrigado a fazer opções consecutivas. O fenômeno ficou famoso ao ser descrito em uma análise feita sobre juízes israelenses que tinham de determinar as condicionais dos presos – e a probabilidade de o detento obtê-la era mais alta logo no comecinho da manhã ou após a pausa, diminuindo conforme a sessão ia avançando. A chance de ser beneficiado com o instrumento bem antes do intervalo ou do almoço? Praticamente zero. Ela também é o motivo pelo qual a concessionária de automóveis lhe oferece opcionais caros e desnecessários ao fim de uma lista de itens e o supermercado coloca os doces bem perto do caixa.

Seu médico não é imune. Em um estudo de 2014, eu e meus colegas pesquisadores concluímos que ele receita menos antibióticos – desnecessários – para infecções respiratórias logo nas primeiras consultas da manhã, mas que o número vai aumentando ao longo do dia. Inferimos que exatamente o mesmo médico, cuidando exatamente do mesmo paciente, tinha 26% a mais de chances de receitar um antibiótico às 4 da tarde do que às 8 da manhã.

Conforme vai ficando mais cansado, ele deixa de fazer o mais fácil, ou seja, explicar ao paciente por que ele não precisa tomar antibiótico. Com o passar das horas, porém, o medo de talvez se deparar com a decepção, a insatisfação, a raiva ou a confrontação vai crescendo sem parar, ao mesmo tempo em que diminui a disposição de encarar os pacientes – e assim eles saem da clínica com remédios de que não necessitam.

O mesmo padrão apareceu em casos de receitas de vacinas para a gripe (a menos), de opioides para dor nas costas (a mais) e diminuição da frequência de lavagem das mãos. Da mesma forma que o público, nós, médicos, gostamos de nos ver sempre como tomadores das decisões mais racionais – mas, dependendo da hora do dia, os tratamentos variam.

O que pode ser feito? Metade da solução é saber que o problema existe, encontrar uma forma de compensação e talvez fazer uma pequena pausa. Só que estipular intervalos compulsórios não diminui o volume de trabalho. Sem dúvida, melhorar a eficiência da geração atual de registros eletrônicos deixaria as coisas mais redondas no consultório.

A maioria dos exames de detecção de câncer e serviços preventivos poderia ser feita fora da consulta, pela equipe de apoio, o que permitiria ao médico se concentrar nos cuidados necessários do momento. Isso, porém, exigiria mudanças radicais no procedimento da maioria das seguradoras, que ainda cobrem somente as consultas.

Leia também: A saúde precisa de uma população mais consciente (artigo de Cadri Massuda, publicado em 6 de março de 2019)

Leia também: Uso consciente e sustentabilidade dos planos de saúde (artigo de Maurício Lopes, publicado em 19 de agosto de 2017)

Mas não são só os médicos que perdem a produtividade com o passar das horas; um novo estudo mostra que a frequência de exames de detecção e acompanhamento do paciente com consulta no fim da tarde é menor, mesmo um ano depois. A fadiga do fim do dia pode ser responsável pela não realização dos procedimentos necessários após a consulta de detecção de câncer.

Se os médicos fossem pagos com base na qualidade do tratamento oferecido e não no número de consultas, certamente as clínicas, hospitais e sistemas de saúde fariam questão de oferecer lembretes mais eficientes, a médicos e pacientes, de continuidade de tratamento, mais profissionais de apoio e até mesmo consultas mais longas.

Mas, então, o que você pode fazer se tiver um check-up marcado para as 4 da tarde? Afinal, nem todo mundo consegue agendar consultas de manhã. Prepare-se. Procure saber os tipos de exames aos quais você tem direito, discuta com seu médico quais são os mais adequados. Assim que eles forem pedidos, organize o retorno e os procedimentos posteriores imediatamente.

E pense em tomar uma xícara de café antes de entrar no consultório.

Jeffrey A. Linder é professor e chefe da Divisão de Medicina Interna Geral e Geriatria da Faculdade de Medicina Feinberg da Universidade Northwestern.

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