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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

“Finda a luta, quando, sedento, esfomeado, exausto, por causa do furor com que lutara, apoiado me achava em minha espada, chegou-se-me um senhor mui bem vestido, tão guapo quanto um noivo, a barba feita como campo de sega após a festa (...) Louco me deixava vê-lo assim tão casquilho e perfumado, a falar, tal qual uma camareira, de tiros de canhão, tambor e golpes” (Relato de Hotspur em Shakespeare, Henrique IV, Parte I, Ato I, Cena III)

Se, como diz a canção, “Todo artista tem de ir aonde o povo está”, é preciso reconhecer que o cantor sertanejo Gusttavo Lima fez jus à lição ao se declarar contrariamente ao Estatuto do Desarmamento e em favor da posição do pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro, que tem cobrado maior rigor no enfrentamento aos criminosos, atualmente beneficiados por uma lei penal frouxa e leniente. Desde o referendo de 2005, e em sucessivas pesquisas de opinião promovidas por uma imprensa em estado de perpétua negação ante os resultados, a esmagadora maioria da população posiciona-se invariavelmente ao lado do cantor. E, no entanto, a fala de Gusttavo Lima vem sendo reiteradamente descrita como “polêmica” ou “controversa” pelos órgãos de mídia, o que revela o estado agudo de alienação de nossos jornalistas, desatentos para o fato de que polêmicas e controversas são as suas opiniões.

Ao expor sua opinião em vídeo divulgado nas redes sociais, no qual, ainda por cima, aparecia num estande de tiro disparando com um fuzil, o cantor não podia imaginar que a nova tendência no Projaquistão (termo com que Alexandre Borges, colunista da Gazeta, designa os artistas militantes, quase sempre da Rede Globo) era bem outra: em vez de seguir o povo, tomar a direção oposta e, de preferência, afetando ares de superioridade olímpica. Com efeito, para alguns artistas brasileiros, as opiniões reais do povo, especialmente no que diz respeito à segurança pública, são tidas por “simplistas”, quando não nefastas. “A realidade é mais complexa”, dizem, imaginando-se muito sofisticados e moralmente evoluídos. “É preciso evitar maniqueísmos”, pontificam, arrogantes, respaldados por um forte esquema de autobajulação e elogios em boca própria, que traduz um eficaz mecanismo de homogeneização das consciências, mecanismo que Gusttavo Lima ousou desafiar ao cometer o pecado da sinceridade e ecoar a voz do povo brasileiro de carne e osso, não o povo inventado pelos bem-pensantes.

Em três dias, Gusttavo Lima passou de queridinho dos órgãos de mídia a persona non grata

Menos ainda podia imaginar o cantor que, por seu posicionamento (midiaticamente incorreto, popularmente consagrado), fosse ser alvo, tão imediatamente, de uma campanha de assassinato de reputação digna de um Stalin ou um Mao Tsé-tung, apenas que não conduzida pelo Estado, mas por um establishment cultural que, não obstante jurando representá-lo, foge do povo como o diabo da cruz.

A coisa começou no domingo, dia 25 de fevereiro, quando Gusttavo Lima apareceu no programa Fantástico para lançar nova música, em participação gravada antes da opinião “polêmica”. Ao fim da matéria, que incluía um bate-papo entre ele e uma apresentadora toda risos e dentes, a direção do programa decide fazer uma inserção, gravada após o ocorrido. Agora já com fisionomia fechada, a mesma apresentadora comenta sobre a postagem do cantor, encerrando o texto com uma técnica quase eisensteiniana de associação de imagens, de uma sutileza paquidérmica: “O vídeo no estande de tiro foi gravado no estado da Flórida (...), o mesmo estado onde, há 11 dias, um aluno entrou numa escola armado com um fuzil AR-15 e matou 17 pessoas. A manifestação de Gusttavo Lima aconteceu também num momento em que o Brasil passa por uma grave crise de segurança pública, a ponto de o Rio de Janeiro ter sofrido uma intervenção federal comandada pelo Exército, daí ter provocado tanta polêmica”.

Horas antes da tentativa grosseira de contaminar a imagem do rapaz com o horror do massacre na Flórida e a criminalidade no Rio de Janeiro, manipulação que apela ao sentimento de medo do público, um outro veículo já havia ligado a máquina de moer reputações, desta feita apelando ao sentimento de inveja: “Saiba quanto custou o novo jato de Gusttavo Lima”, dizia a manchete. Dias depois, nova ofensiva: “Polícia indicia Gusttavo Lima e mais três por aumentar represa da fazenda sem possuir licença”, em matéria online duas vezes reproduzida na televisão, uma no Jornal Hoje, outra na Globo News.

Do mesmo autor: Termostato da diversidade (7 de janeiro de 2018)

Leia também: Crise, intervenção e o flagelo dos “especialistas” (artigo de Diego Pessi e Bruno Carpes, publicado em 19 de fevereiro de 2018)

Em coisa de três dias, portanto, o pop star sertanejo começou a aparecer reiteradamente associado a fatos negativos, passando de queridinho dos órgãos de mídia a persona non grata, num processo muito similar ao que vitimou Wilson Simonal na década de 1970. Como escrevi em A Corrupção da Inteligência, “o caso Simonal foi um laboratório. O mecanismo à época mobilizado contra o cantor – banido de casas de show, de teatros, dos estúdios da Globo e da Tupi, e de todos os espaços reservados àquela ‘gente de doçura e luz’ de que fala Matthew Arnold – continua em pleno vigor”. E, como se vê, continua mesmo.

Diferente de Gusttavo Lima, punido pelo Grande Irmão por entreter os pensamentos errados e ir aonde o povo está, um grupo de artistas prafrentex (sempre os mesmos!) achou por bem ostentar virtude, fazer proselitismo político-partidário com coisa séria (são quase todos cabos eleitorais do PSol) e dar as costas ao povo. Em vez de punidos, contudo, são e continuarão sendo dignos dos mais altos salamaleques, mimos e honrarias do establishment cultural. Mantendo essa linha reta, jamais verão de cenho franzido os apresentadores do Fantástico.

Intitulado “Movimento 342”, o distinto grupo de artistas, cujo espírito de engajamento só não é maior que sua cara de pau, criou a hashtag “Intervenção é Farsa”, numa tentativa de deslegitimar a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, apoiada, segundo o Ibope, por nada menos que 84% dos cariocas e fluminenses, e especialmente pelos moradores das áreas dominadas pelo tráfico de drogas. Evidentemente, nenhum vídeo fora gravado por esses artistas quando, no ano passado, traficantes instituíram um sistema de revista de moradores da Rocinha, a fim de encontrar delatores. Nem quando, há alguns dias, uma senhora foi torturada por traficantes na favela Kelson’s, na Penha. E nem quando a pequena Emily Sofia, de apenas 3 anos, foi morta a tiros por assaltantes em Anchieta. O sofrimento dessas e de outras tantas pessoas não lhes diz absolutamente nada. Trocaram os populares bailes da vida – tediosos, caretas e atrasados – pelas exclusivas e concorridas baladas da vida, onde, entre mil e uma distrações lisérgicas, se dedicam a pensar mui corretamente sobre todas as coisas.

PS: Este artigo é dedicado à memória de todas as vítimas da criminalidade no país, em especial à dos policiais militares mortos em serviço, aos quais jamais se dedica vídeo-denúncia algum.

Flavio Gordon, doutor em Antropologia, escritor e tradutor, é autor de “A Corrupção da Inteligência: Intelectuais e poder no Brasil”.
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