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No artigo “Adeus, neutralidade de rede; olá, concorrência”, Jeffrey Tucker apresenta uma defesa da eliminação de um dos princípios básicos da regulação da internet: a ideia de que quem provê o acesso à conexão à internet não pode privilegiar certos tipos de conteúdos. Esse princípio básico de “não discriminação do tráfego de dados” ganhou o nome de “neutralidade de rede” nos últimos 15 anos. Ele impede, por exemplo, que um provedor de conexão estipule diferentes planos de acesso a depender do que você acessa. Impede também que a velocidade de download de parceiros comerciais fique mais rápida que a de dados de “não parceiros”.

O artigo de Tucker consiste em uma defesa entusiasmada do planos do governo Donald Trump e do comissário Ajit Pai, atual presidente da Comissão de Comunicação Federal (FCC) dos Estados Unidos – o equivalente à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) no Brasil. Para Tucker, é hora de “desregulamentar o setor” e eliminar as regras de neutralidade de rede. Ele apresenta cinco argumentos em defesa da remoção das regras de neutralidade de rede, em uma tentativa mirabolante de convencimento do leitor. Todos são falhos, inconsistentes e meramente retóricos. Explicamos por quê.

Primeiro, Tucker argumenta que a eliminação da neutralidade de rede levaria a mais competição. O raciocínio é que, sem neutralidade, empresas de telecomunicações poderiam diversificar seus produtos e diminuir custos de entrada para novos participantes. O argumento esconde o fato de que os grandes defensores da remoção das regras de neutralidade de rede são os grupos monopolistas que dominam quase 70% do mercado de conexão à internet nos EUA. Ajit Pai, aliás, era advogado de uma dessas empresas. Esconde também que os provedores de internet continuaram investindo fortemente em infraestrutura durante o período em que as regras atuais da FCC estiveram em vigência.

Grande parte da inovação na internet ocorreu na camada de aplicações, justamente pelo tráfego não discriminatório dos dados

O argumento também esquece que grande parte da inovação na internet ocorreu na camada de aplicações, justamente pelo tráfego não discriminatório dos dados. YouTube e Spotify se tornaram aplicações populares pois não há acordos comerciais determinando se eles serão acessados mais rapidamente ou lentamente. Como defendido por muitos acadêmicos, esse respeito ao usuário da ponta – e sua liberdade de uso e inovação – é uma das arquiteturas básicas da internet.

O segundo argumento de Tucker é o de que a remoção da neutralidade da rede irá “acabar com o socialismo da internet”, fazendo com que as pessoas possam escolher o que querem. Trata-se de retórica populista. Na realidade, com mercados já altamente concentrados, o que pode acontecer é que as operadoras irão segmentar seus públicos com base na capacidade de compra. O mais rico terá acesso a “serviços premium”, ao passo que o mais pobre terá que se limitar a “conteúdos básicos”.

Em mercados como o norte-americano e o brasileiro – que padecem do mesmo problema de concentração e domínio de grandes operadoras –, o consumidor tem pouca liberdade de escolha. O domínio de mercado é evidente: especialmente nas grandes cidades, há bairros com apenas um provedor de conexão à internet. E isso não é nenhuma surpresa: uma vez que uma empresa fez o investimento de levar fibra a uma casa ou edifício, sai pouco rentável para outra empresa fazer o mesmo investimento e competir. Em países como Brasil ou EUA, os grandes provedores operam como monopólios naturais.

Leia também: Adeus, neutralidade da rede; olá, concorrência (artigo de Jeffrey Tucker, publicado em 10 de dezembro de 2017)

Leia também: Quem vai controlar a chave geral? (artigo de Rosa Leal e Marcello Miranda, publicado em 25 de março de 2014)

Tucker, de forma conveniente, ignora que, quando pensamos em internet, pensamos nos serviços que se pode usar, e não no provedor. A melhor garantia de competição e do funcionamento dos mercados é a neutralidade de rede: em uma rede isonômica, terão mais usuários os melhores serviços, e não aqueles que puderem pagar por uma “pista rápida”. Ademais, é preciso lembrar que não há nada que impeça os provedores de oferecer suas próprias aplicações, que não são usadas por sua má qualidade, e não por serem de difícil acesso.

Terceiro, Tucker afirma que a neutralidade de rede é defendida pelas grandes empresas de tecnologia (Google, Amazon, Facebook), mas não pela população. Essa tese é insustentável. A consulta pública sobre as mudanças nas regras de neutralidade de rede teve participação recorde nos EUA, com 77% de apoio às regras de não discriminação. Uma pesquisa feita em Harvard, com coordenação do professor Yochai Benkler, mostrou enorme pluralidade de atores em discussões sobre neutralidade de rede. Nos EUA, milhões de pessoas pediram duas vezes que a FCC protegesse a neutralidade de rede. Há, inclusive, parlamentares republicanos que se opuseram às reformas propostas pela FCC. A pergunta que Tucker deveria fazer é: por que os grandes provedores de acesso à internet são os únicos atores que pedem para que as regras do jogo sejam modificadas unilateralmente? Se o plano fosse tão bom, eles deveriam poder contar com outros aliados.

A internet foi desenhada como uma rede de sistemas autônomos que transmite informação de ponta a ponta, onde os cabos não discriminam

O quarto argumento do autor é o de que a neutralidade de rede gera danos a pequenas empresas e limita a inovação. Muito pelo contrário: graças à neutralidade de rede, as melhores ideias são as que triunfam na internet, e não aquelas com mais dinheiro por trás. Quando começou, o YouTube brigou com o Google Video – e venceu. Sem neutralidade de rede, somente alguns gigantes podem ganhar. Os gigantes da internet que Tucker denuncia já têm os recursos virtualmente ilimitados para pagar pelas “pistas rápidas”. São os empreendedores e as pequenas empresas que sofrerão.

Por fim, Tucker argumenta que, ao considerar os provedores de acesso à internet como de utilidade pública (public utility), o governo pode exercer um controle autoritário sobre o mercado de internet. Isso é falso. Para poder garantir a neutralidade de rede, como consequência de litígios propiciados pelos próprios provedores, o Judiciário fomentou que a FCC classificasse os provedores como serviços de telecomunicações. É simples: de acordo com as leis e a Justiça dos EUA, a única maneira de garantir a neutralidade de rede é colocando os provedores na mesma categoria que os prestadores de serviços de telecomunicações. Equivoca-se Tucker quando sugere que a FCC trata os provedores como se fossem caminhões de lixo.

Definitivamente, a internet existe como a plataforma aberta à inovação e competição que transformou a forma como nos comunicamos, aprendemos, nos divertimos e fazemos negócios, precisamente em razão da neutralidade de rede. E isso não foi um acidente. A internet foi desenhada como uma rede de sistemas autônomos que transmite informação de ponta a ponta, onde os cabos não discriminam. Eliminar a neutralidade de rede é transformar a internet em uma plataforma como a tevê a cabo, em que o prestador decidirá o que podemos acessar conforme o quanto pagamos. Há poucos dias, Vint Cerf, Tim Berners Lee e Steve Wozniak enviaram uma carta aberta para a FCC intitulada “Vocês não entendem como a internet funciona”. Nós acrescentamos: Tucker também não.

Rafael A. F. Zanatta é mestre em Direito pela USP e líder do programa de direitos digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Agustin Rossi é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário Europeu e diretor de políticas globais da Public Knowledge.
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