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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Um acordo ortográfico em nada influi diretamente no funcionamento de uma língua. Uma língua e seu sistema de escrita são duas entidades diferentes, de naturezas diferentes. O que se costuma afirmar sempre que o tema, polêmico, sem dúvida, aparece entre pessoas de vários graus de instrução, varia levemente em torno do tema da dificuldade de se aprender português. O que é difícil, para as pessoas, é a experiência de aprender regras e listas de exceções gramaticais e ortográficas na escola, ou seja, passar pelo processo de letramento e aprendizagem de diferentes níveis e variedades da própria língua.

Ocorre que a língua escrita, ou a possibilidade de escrever uma língua, é um sistema artificial e normatizado por seus usuários (não apenas pessoas, mas também instituições, formadas, claro, por usuários da língua), mas, antes de tudo, secundário e acidental com relação à existência de uma língua em si. Como seres humanos, usamos a língua naturalmente há muito mais tempo do que somos capazes de usar um sistema de representação escrita para ela. Até hoje, adquirimos naturalmente a faculdade da linguagem (oral ou, no caso dos surdos, gestual – o que dá no mesmo em termos de complexidade e completude como sistema linguístico), mas só aprendemos a escrita através de instrução – escolar ou de outro tipo. Ou seja, a linguagem é de alguma forma, inata, mas a escrita, não. E os primeiros sistemas de escrita, sejam eles alfabéticos, ideográficos ou variações dessas possibilidades, decerto não contavam com instituições externas compostas de pessoas e normas reguladoras para que todos grafassem as mesmas palavras da mesma maneira.

A ampliação das possibilidades de circulação de documentos escritos tornou cada vez mais importante a normatização dos sistemas ortográficos

Até muito recentemente os sistemas de escrita sobreviviam relativamente bem sem a necessidade dessas estruturas. Hoje em dia, contudo, e já desde alguns séculos, a ampliação das possibilidades de circulação de documentos escritos tornou cada vez mais importante que instituições e governos dispusessem de mecanismos de normatização dos sistemas ortográficos (os Vocabulários Ortográficos, como o da Academia Brasileira de Letras, são documentos importantes nesse sentido), especialmente através de Acordos Ortográficos, que, em nosso caso, podem ser internacionais.

O que faz um acordo ortográfico entre diferentes países que falam a mesma língua? Simplesmente estabelece regras sobre como grafar as palavras da mesma forma nesses vários países. Ou seja: a língua, suas variantes, suas gramática, seus léxicos, suas prosódias, nada disso se altera. Alteram-se sutilmente pequenas questões de acentuação, hifenização, e, em raros casos, da ortografia de algumas palavras – em Portugal grafava-se “facto”, aqui grafamos “fato”.

O fato de que quase todos os países que têm a língua portuguesa como língua oficial terem aderido ao acordo é extremamente benéfico – livros podem ser impressos e lidos em vários desses países sem grande necessidade de adaptação, por exemplo.

O fruto de uma mentalidade novidadeira: A aposta na instabilidade (artigo de Diogo Fontana, editor e escritor)

Ou seja: o acordo ortográfico foi bom para a língua portuguesa? Na medida em que mais pessoas têm acesso a regras claras sobre como grafar sua própria língua (especialmente em documentos oficiais, livros etc.), mais facilidade e possibilidade de circulação a língua possui – mas isso apenas quanto a sua modalidade escrita. De resto, o que a língua ganha ou perde? Nada. Tirando alguns saudosistas que sofrerão por muito tempo com a queda do trema na linguiça, a língua não mudou. O que mudou foi a ortografia, o sistema de representação escrita. Como vimos, este não se adquire naturalmente. Precisamos da escola para isso. Mas já precisávamos antes. Pouco muda. Aprendemos algumas novas regras sobre como grafar as palavras e a língua que sempre foi nossa e que adquirimos naturalmente desde bebês continua a ser nossa. Nem mais, nem menos.

Rodrigo Tadeu Gonçalves é professor de Letras na UFPR e diretor da Editora UFPR.
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